por RVP
Conduzir sem capacete pode provocar a morte...
«A meio da tarde de Sábado, dia 16 de Março, o Rúben Marques, um jovem de 18 anos residente no bairro da Bela Vista, em Setúbal, morreu na sequência de uma perseguição policial. O acontecimento tornou-se notícia, não pela vida que se perdeu, mas pela rapidez com que a população da Bela Vista cercou a esquadra local em protesto, originando tumultos um pouco por todo o bairro. A revolta só foi contida através dum aparatoso dispositivo policial mobilizado para o efeito e que aí permanece desde então» – assim inicia um artigo de Diogo Duarte, publicado no Passa Palavra, a descrição dos factos.
Rúben Marques conduzia a sua mota sem capacete. A polícia tê-lo-á mandado parar (segundo a descrição da própria polícia). Rúben não obedeceu. Seguiu-se uma perseguição, dois disparos, o despiste e morte do jovem. A mota terá embatido num lancil do passeio, atirando com o seu condutor contra uma caixa de electricidade.
A ausência de capacete e a fuga pois são apresentadas pela polícia como justificação suficiente para iniciar uma perseguição e disparar dois tiros. Segundo algumas testemunhas, uma das balas terá acertado nas costas de Rúben, a outra na cabeça; segundo a polícia e a autópsia, terá morrido em consequência duma queda durante a fuga.
O primeiro absurdo da narrativa policial é evidente: se a obrigatoriedade legal de uso do capacete se destina a proteger a vida de quem conduz, que sentido faz persegui-la com disparos? – ou seja, colocá-la em risco de vida?
O segundo absurdo reside no facto de nessa mesma semana a polícia ter procedido à identificação de Rúben e respectiva mota – sabia portanto quem ele era, onde morava, que mota usava; bastaria ir caçá-lo a casa.
O terceiro absurdo resulta do facto de Rúben não ser um motoqueiro qualquer, mas sim um praticante de motocross. Regressava precisamente nesse instante de uma sessão de treino num baldio próximo. Temos de supor que vinha cheio de adrenalina e que é pelo menos estranho que se estatelasse por embater contra um lancil de passeio. Em contrapartida, certamente não há perícia que aguente o embate de duas balas no corpo, ou pelo menos não há concentração e calma que se sustentem ao som de dois disparos.
«Considerar que em tudo isto há alguma coisa de acidental, como conta a versão policial, é, no mínimo, repugnante», comenta o referido artigo do Passa palavra. Acresce a tudo isto que a indagação da Policia Judiciária (encarregue de averiguar todos os casos de morte violenta) foi dispensada... pela PSP!
Uma guerra em curso há muito tempo
O cenário de fundo destes acontecimentos é o Bairro da Bela Vista. Um lugar onde «o desemprego, a exclusão social, a pobreza, a extrema degradação material dos edifícios e dos espaços exteriores, tudo fruto do abandono negligente das autoridades durante décadas, fervem, num ciclo vicioso, um caldeirão onde o futuro deixou há muito de ser uma palavra e o presente não é mais do que um conjunto limitado de opções», como bem resume o artigo do Passa Palavra, onde se faz um retrato histórico e sociológico do bairro que vale a pena ler, para compreendermos de que estamos a falar.
É neste caldeirão que se vai estendendo a lista de mortos na sequência de acções policiais. Esta lista corre em paralelo com a de todos os feridos nos confrontos entre pessoas indignadas e a polícia, os bebés vítimas de gás pimenta lançada dentro de casa por rusgas policiais à procura sabe-se lá de quê (um capacete?), as pessoas espancadas e presas em casa pelos mesmos motivos... E no entanto «não há, na Bela Vista, memória de um só polícia condenado por um assassinato que tenha cometido, quando houve casos mais do que suficientes para que isso acontecesse nos últimos anos».
Enquanto a chamada classe média de Lisboa se queixa da guerra que lhe é movida pelo fisco, pelas medidas de austeridade, pela política deliberada de desemprego (expressamente inscrita no Orçamento de Estado de 2013), a população do bairro da Bela Vista e de muitos outros bairros de Portugal enfrenta uma guerra feita com armas e bastões – uma guerra onde há mortos e feridos de facto, e não na consola de jogos; uma guerra que exprime claramente a secreta vontade das autoridades em resolverem o problema da pobreza e da marginalização através do extermínio puro e simples. Essa classe média ainda instalada nos seus bairros não marginais, fora dos guettos, tem de olhar para o que se passa nos meios sociais que já caíram mais fundo e pensar que serão eles, os membros da classe média, as vítimas que seguem nesta guerra literalmente sangrenta e sem fronteiras – mais vale que mostrem agora a sua solidariedade, para que depois, quando precisarem dela...
Segundo informação publicada no Indymedia, na sequência da preparação da concentração de sábado, durante a madrugada de 21 de Março, cinco pessoas foram detidas em Setúbal pela PSP. Foram levados para a esquadra da Avenida Luísa Todi, onde foram constituídos arguidos por danos e posse de cartazes. Todos os detidos foram agressivamente pressionados e humilhados. Foram feitas ameacas à integridade física e um dos detidos foi agredido fisicamente. Os detidos foram libertados após 4 horas de detenção. Esta acção de intimidação por parte da polícia vem reforçar os motivos da concentração convocada para dia 23 contra a violencia policial.