por Maria José Araújo
De norte a sul do país já foram formadas cerca de 1700 pessoas, autarcas, padres, agentes de IPSS. Segundo registou Olívia Santos, jornalista da RTP, «através do Programa Interlocutor de Segurança, a GNR espera que estas pessoas possam melhorar a relação das populações com a Guarda, em especial no que se refere a acções de sensibilização e prevenção».
A mesma fonte cita que «sobre as acções de formação da GNR a civis, o major Fonseca, chefe da repartição de programas especiais da GNR», considera que se pretende que estes venham a ser «interlocutores das forças policiais junto das suas comunidades». À Antena 1, o mesmo oficial da GNR tinha explicado que «estas pessoas podem também fornecer às forças policiais informação privilegiada sobre o que se passa nas comunidades».
Entre outras questões, uma delas dizia respeito ao tipo de parceria entre os civis, formados pela GNR, e as forças de segurança. Confrontada com o facto de os actuais interlocutores [parceiros civis] poderem ou não ser considerados informadores ou agentes no terreno por passarem «informação sobre os cidadãos para a polícia», a GNR não pôde senão responder que «acaba por ser» uma realidade. Apesar de a descontextualização redutora («acaba por ser», a única resposta dada pela GNR retirada da gravação) não ser inocente, parece esclarecedora. Isto é, parece ser um dos objectivos.
Vozes idênticas, vozes distintas
No actual processo de formação de «parceiros civis» da GNR várias vozes se levantaram. Como seria de esperar, algumas noticiavam apenas um facto entre outros; as vozes institucionais assumiram-se como aplacadas e as vozes ditas alternativas questionaram-se em alerta firme.
Entre estas últimas, o Grupo Parlamentar do Bloco de Esquerda (BE) dirigiu-se ao Governo, questionando-o sobre «a avaliação que o Ministério da Administração Interna faz deste projecto no âmbito das estratégias de reforço do policiamento de proximidade, nomeadamente, quanto a custos e níveis de eficácia». Para além desta questão o BE pretende ainda que o Governo esclareça «qual é o papel objectivo dos interlocutores que foram alvo da citada formação, qual é o quadro de interacção com as forças de segurança» e finalmente se «pode o governo garantir que não há qualquer colisão entre este programa e outros, nomeadamente o Programa Escola-Segura».
Já o major Gonçalo Carvalho mencionou à TVI que não se tratava de formar pessoas para denunciar, mas antes «despertar pessoas, (…) sensibilizar (…) e facilitar a ligação à GNR», refere Cláudia Lima da Costa.
A ideia terá sido premiada na Rede Europeia de Prevenção de Criminalidade e teve origem na Dinamarca. «Fomos buscar o conceito para o aplicar em Portugal para estar mais próximo das populações e expor os serviços que a GNR tem disponíveis e que muitas vezes não são do conhecimento dos cidadãos», explicou o major Gonçalo Carvalho. Segundo o jornal Sol, «para o major Paulo Poiares, os Interlocutores Locais de Segurança servem para esclarecer a população sobre dúvidas que possam ter, ou então encaminhar as pessoas para os locais certos para tratarem dos assuntos ligados com a segurança». A Lusa (via MSN Notícias) revela que «a GNR pretende que esta formação seja repetida todos os anos».
Sobre o mesmo assunto, o Notícias da Região de Vila Real refere que durante «uma formação ministrada pelo Comandante da GNR do Peso da Régua» a fim de «facilitar o policiamento de proximidade, foi solicitado (…) aos presentes que se tornem Interlocutores Locais de Segurança, de modo a facilitarem a colaboração entre a comunidade e a polícia. Esta proximidade visa prevenir e conter a criminalidade, fortalecer parcerias e aumentar a responsabilidade e a participação dos cidadãos, criando um sentimento de segurança e confiança na população».
Na blogosfera, podemos encontrar, entre outros, no Anti-Colonial 21, a opinião de que «esta formação de informadores por parte da GNR, seguindo o modelo da PIDE/DGS, é explicada como meio de combater a criminalidade». Segundo os mesmos, «não é para combater a criminalidade do caso BPN nem do caso "Monte Branco", porque envolve crimes de colarinho branco». «Estes informadores terão uma acção prioritária na obtenção de informações sobre manifestações contra o governo PSD-CDS e contra os colonizadores de Portugal conhecidos por troika (“BCE” “CE” e FMI) (…) e constituirão meios de constituição de um departamento de polícia política, semelhante à PIDE/DGS.» Se esta interpretação estiver correcta, a democracia corre o risco de estar a dois passos de se desmoronar – e sem que nos demos conta.
O facto é que a iniciativa de formação da GNR permite (se assim se desejar) saltar airosamente por cima de todos os mecanismos e barreiras legais protectoras dos direitos civis, sociais e políticos das populações. Estes mecanismos foram laboriosamente construídos com base numa experiência de décadas (a experiência histórica da ditadura). Passa-se muito facilmente da simples prevenção ao acto mais desprezível de acusação sem presunção de inocência, através do «parece que», «diz-se que», «ouve-se que» ou ainda «suspeitamos que». Por conseguinte o assunto merece toda a atenção e alerta.
Origens dos bufos
Até entre os miúdos encontramos «chibos» ou «bufos» – aqueles em que jamais se pode confiar porque passam qualquer informação, secreta ou não, a troco de nada, de pouco, de muito, mas especialmente a troco de proteccionismo ou qualquer outro benefício. Se quisermos ser brandos podemos dizer que são apenas «informadores». «Bufo» é, no vocabulário popular, aquele que vai discretamente soprar denúncias ao ouvido das autoridades (sejam elas de tipo familiar, empresarial ou estatal), assim traindo os seus pares.
Em 1945 Salazar empreende a modernização do aparelho policial secreto com a criação da PIDE, atribuindo-lhe a missão de defender o regime contra as actividades das organizações clandestinas e «subversivas». É instituído o recurso a métodos que iam da vigilância dos actos quotidianos, da correspondência e das telecomunicações privadas de «suspeitos», à prisão sem culpa formada e à criação e manutenção de uma rede tentacular de informadores (civis oficiosamente recompensados com dinheiro e protecção pessoal e de carreira profissional). Frequentemente, nas suas relações de vizinhança e familiares, o bufo, apesar de beneficiar de anonimato nas suas denúncias, nem sequer se esforçava muito por esconder inteiramente a natureza das suas actividades – a ameaça ou simples suspeita do seu estatuto de bufo permitia-lhe abusos e privilégios contra os quais ninguém ousava opor-se (ainda que fosse defensor do regime), para não sofrer represálias nem ser injustamente denunciado.
A lenta e sistemática construção de uma cultura fascista
Esta teia de vigilância civil era um dos pilares fundamentais da PIDE e adquiriu tais proporções na vida quotidiana, que deu origem a hábitos sociais e culturais anómalos, ainda hoje detectáveis não só em comportamentos mas também em ditados: «até as paredes têm ouvidos». Encontramos este tipo de comportamentos em todos os países onde houve regimes fascistas – na Alemanha, por exemplo, as pessoas mais velhas, à cautela e mantendo um medo embebido desde os tempos do regime nazi, ainda hoje fogem de abordar certos assuntos, tal como acontece amiúde em Portugal.
À tacanhez cultural vai-se assim juntando a barreira ao debate público, a estreiteza de espírito, o medo e por fim o terror. Não gostaríamos de ver regressados esses tempos.