Relatório da OIT - Desigualdade na repartição dos rendimentos

02-01-2013

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) publicou em Dezembro passado o Relatório Mundial sobre Salários 2012-2013. É sem dúvida um documento essencial para compreender melhor o que se está a passar política e economicamente neste início de século.

O relatório mostra as tendências do mercado de trabalho (emprego e salário médio), da repartição de rendimentos (entre o trabalho e capital, entre géneros, entre diferentes zonas económicas) e da produtividade do trabalho ao longo dos últimos 10 a 15 anos.

«Quando os salários crescem em proporção dos aumentos de produtividade, ambos são sustentáveis e estimulam a continuação do crescimento económico, em virtude de aumentarem o poder de compra das famílias. No entanto, durante mais de uma década antes da crise, este laço entre os salários e a produtividade do trabalho foi rompido em muitos países, o que contribuiu para a criação de desequilíbrios económicos mundiais. O relatório mostra que desde 1980 na maioria dos países existe uma tendência de queda da “quota do trabalho nos rendimentos”, ou seja, a parte do rendimento nacional que vai para os salários diminuiu enquanto a parte que vai para o capital aumentou.» – Relatório Mundial sobre Salários 2012-2013

O aumento dos desequilíbrios locais e globais

Para termos uma ideia dos desequilíbrios salariais a nível global, basta verificar que um trabalhador filipino leva para casa cerca de US$ 1,40 por cada hora de trabalho; um assalariado brasileiro do mesmo sector de trabalho recebe em média US$ 5,40/hora; um grego, US$ 13,00/hora; um norte-americano, US$ 23,30/hora; um dinamarquês, US$ 34,80 (contas arredondadas ao câmbio de 2010). Entre o dinamarquês e o filipino vai uma razão de 25 vezes!

Crise, sim, mas para quem?

O gráfico mundial da evolução dos salários reais é enganador, devido ao peso dos países emergentes na população mundial. Nalguns desses países houve subidas muito acentuadas dos salários nos últimos anos, com especial destaque para a China (mais de 1/7 da população mundial) – embora, ainda assim, os salários nessas regiões continuem a ser 10 a 25 vezes inferiores aos salários europeus.

Se omitirmos a China, o crescimento dos salários reais a nível mundial foi de 0,2%. Mas na maioria dos países avançados foi negativo, situando-se agora a níveis inferiores aos registados antes da crise de 2007-2008.

 

Crescimento dos salários reais em duas regiões económicas

Mesmo dentro de cada grupo económico de países os gráficos são muito enganadores, pois ao representarem as médias, mascaram as diferenças entre países. Assim, por exemplo, enquanto na Alemanha, ao fim de 10 anos de redução continuada dos salários médios reais, começa agora desde 2011 a verificar-se alguma retoma, em países como a Espanha, Portugal e Grécia os salários caíram a pique.

Nos países mais desenvolvidos, industrial e politicamente poderosos (os países do centro, como tendem agora a ser chamados, por oposição à periferia), os salários reais, antes da crise, foram sistematicamente reduzidos durante 10-15 anos. No entanto, o rendimento e a produtividade nesses países aumenta continuamente. Verificamos portanto dois movimentos em sentido contrário: o PIB cresce, a produtividade do trabalho aumenta, mas a parte que cabe aos trabalhadores na distribuição de rendimentos diminui. Para onde foi então todo esse rendimento excedente? – para o capital, cujos lucros não param de crescer.

Cada vez se alarga mais o fosso entre os 10% da população com rendimentos mais elevados e os 10% da população mais pobre.

Este crescimento da riqueza, da produtividade e do PIB, acompanhado de uma queda dos salários reais e de um aumento dos desequilíbrios locais e mundiais na distribuição dos rendimentos, tem um significado claro em ciência económica: a intensificação de mecanismos de extracção da mais-valia absoluta. Ela faz-se não só através da redução dos salários reais, mas também do aumento da carga horária de trabalho, da proliferação das formas de trabalho não pago, etc. Para uma análise pormenorizada destes mecanismos, ver o artigo de Eric Toussaint «A Maior Ofensiva Contra os Direitos Sociais Levada a Cabo Desde a Segunda Guerra Mundial à Escala Europeia».

Para um melhor entendimento do relatório da OIT

Neste tipo de relatórios técnicos há um conjunto de conceitos que convém ter presente, para compreender o significado dos dados fornecidos.

Salário médio – A forma mais fiável de calcular a média dos salários numa região é através do salário mensal (e não o salário por hora ou por dia, como fazem alguns economistas), o que permite despistar em parte as situações de subemprego, de emprego de muito curta duração, etc., – o salário/hora produz necessariamente uma ideia errada da realidade. O relatório da OIT tenta aplicar o método do salário médio mensal, mas nem sempre os dados disponíveis o permitem. Mesmo aplicando este método há imensos factores que continuam a mascarar a realidade. Um gráfico da subida de salários pode ser muito enganoso, se não for acompanhado da evolução da inflação; o cálculo simples da média dos salários (remuneração) não expressa a desigualdade de retribuição do trabalho entre homens e mulheres, nem entre diferentes zonas do mesmo país, etc. Também não expressa o facto de a retribuição do trabalho incluir muitos factores além da remuneração. Finalmente, a simples comparação entre salários em diferentes regiões pode ser muito enganosa, se não for acompanhada de indicadores do custo de vida e reprodução do trabalho nessas regiões.

Salário médio real – É o cálculo da média salarial num país, corrigido por factores como a inflação. Sendo mais fiável, é o critério utilizado no relatório da OIT.

PIB (produto interno bruto) – Grosso modo, representa a soma (em valores monetários) de todos os bens e serviços finais produzidos numa determinada região. Este cálculo, por variadas razões que seria impossível descrever aqui, introduz imensas perversões na visão da realidade económica e vivencial das populações. No entanto a esmagadora maioria dos estudos não ousa fugir a utilizá-lo como método universal de referência e comparação.

Produtividade do trabalho – A produtividade do trabalho mede a razão entre a quantidade (monetária) de produção de bens ou serviços, e a quantidade (monetária) de trabalho necessária para a produzir. Mas este conceito, tal como os outros descritos acima, baseia-se em métodos que introduzem enormes perversões na visão da realidade. Para começar, o que se mede é o valor monetário das coisas. Donde resulta, por exemplo, que o actual governo pode, sem mentir, dizer que a produtividade do trabalho aumentou em Portugal no último ano – apesar de a produção nacional ter caído bastante, os salários caíram ainda mais, e portanto a razão entre ambos (a produtividade) aumentou. Como se vê, trata-se de um conceito sem qualquer interesse para os trabalhadores (mas muito importante para a gestão do capital), mas que, por razões semelhantes às referidas para o PIB, é «obrigatório» nos estudos económicos, mostrando que o tipo de economia ensinada nas escolas visa servir apenas um sector da sociedade (o capital). Da mesma forma, comparar a produtividade do trabalho de um filipino que ganha 1 dólar por hora com a dum trabalhador dinamarquês que ganha 35 euros/hora é um exercício completamente espúrio. No entanto, no relatório da OIT aqui em foco, uma vez que se dá especial atenção às tendências de evolução dos salários e da economia por regiões, este método permite tirar algumas conclusões válidas.

Países emergentes – Esta expressão, que cada vez mais domina o discurso recente nos meios de comunicação e na organização dos estudos económicos, equivale grosso modo ao que costumava chamar-se «países em desenvolvimento». Actualmente tende a pôr em foco países como o Brasil, os países da ex-URSS e Europa de Leste, ou seja aqueles onde se tem verificado um processo recente de desenvolvimento industrial acelerado, combinado com a intervenção do FMI; a China também faz parte deste grupo, embora seja um caso muito específico. Esta classificação é feita pelo FMI e baseada em critérios estritamente numéricos – vale o que vale.

Índice de preços no consumidor – este índice reflecte a variação de preços no mercado e é calculado com base num «cabaz de compras» (que em princípio devia ser constante para permitir comparações fiáveis, mas de facto nem sempre o é). É ele um dos factores principais que permite calcular o valor real dos salários – no sentido em que se o salário de um trabalhador aumentou 2% mas o pão e os transportes aumentaram 8%, regista-se aí uma perda final no cômputo do rendimento/despesa, e não um ganho. Acresce que o «cabaz» é geralmente estabelecido de forma muito enviesada, podendo nalguns países incluir o preço dos produtos no mercado por grosso (e portanto muito inferior àquele que o consumidor final paga), os custos de produção na construção civil, etc. Este enviesamento também dificulta o cálculo do factor seguinte:

Custos da reprodução da força de trabalho – Para que o trabalhador possa recuperar o esforço físico e anímico despendido durante a jornada de trabalho e voltar a trabalhar no dia seguinte, é necessário que reponha as energias gastas – ou seja, que se alimente. É também necessário que cuide da sua saúde e até que sustente os custos da sua reprodução (família, filhos), sob pena de na geração seguinte não haver trabalhadores nas fábricas e nos escritórios... Esta tarefa de reprodução fica geralmente a cargo do próprio assalariado. O cálculo do seu custo mínimo é crucial para o capital. É claro que o empregador tentará reduzir os salários ao limite mínimo, abaixo do qual o assalariado não poderia reproduzir a sua força de trabalho e portanto deixaria de gerar lucros (mais-valia) para o empregador. Um dos factores que caracteriza o neoliberalismo é a tentativa de levar os trabalhadores a este limiar mínimo de reprodução do trabalho, retirando-lhe todo o rendimento «extra».

 

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