Natal dos sem-abrigo no Porto

27-12-2012

Fomos para a rua na véspera de Natal. Tínhamos como objectivo conhecer as  condições que os sem-abrigo vivenciavam nesta data especial. Começámos pela associação Coração da Cidade, passámos pela Remar, e acabámos à conversa com João Lourenço, um sem-abrigo bem conhecido de muitos portuenses.

Da associação Coração da Cidade, Ana Antunes esclareceu-nos que «pela primeira vez, não ia haver distribuição das ceias de Natal pelas ruas aos sem-abrigo nem nas suas instalações e que, este ano, o take away assegurava esse papel». Adiantava-nos ainda que «as refeições se destinavam aos desempregados ou pessoas com serviço precário». Por volta das 19h00 ainda nos abriram a porta no nº 806 da Rua Antero de Quental, de sorriso aberto e ar brincalhão, e perguntavam-nos «qual a senha para entrar». Começavam a ocupar-se das arrumações, depois de terem distribuído refeições embaladas até àquela hora.

 
No fim, duas voluntárias ainda testemunhavam que o momento na associação Coração da Cidade continuava a ser de alegria.

Ceia de Natal na Remar

Passámos rapidamente pela Rua Firmeza, nº 369, e fomos recebidos por Daniel Saunite, responsável pela ceia de Natal da associação Remar, que fez questão de sublinhar que esta instituição está presente em 70 países. De acordo com este responsável, já tinham sido distribuídas “pelas ruas, aos sem-abrigo, refeições quentes tal como fazem 365 dias por ano, especialmente nos  bairros do Aleixo e Pinheiro Torres”. Interpelado acerca da forma como se dirigiam aos sem-abrigo, a mesma fonte sublinhou que «as pessoas já conhecem e dirigem-se à carrinha».
 

Fomos recebidos por Daniel Saunite (ao centro), responsável pela ceia de Natal da associação Remar
 
A ceia de Natal decorria também nas próprias instalações da Remar. Aqui, o evento tinha tido início às 19h00 e a comemoração estender-se-ia, segundo Saunite, «até à meia-noite ou enquanto houvesse gente». Entre muita doçaria, as pessoas iam-se espalhando pelas mesas e «batiam-se» com o tradicional e indispensável bacalhau, couves e batatas.
 
 
 
 
Ouviam-se voluntários comentarem que havia gente «bem vestida mas esfomeada, que se fartava de repetir e de comer de tudo». Para além de comer, diziam, «ainda podem escolher roupa, um agasalho ou o que lhes der jeito». Daniel Saunite informava ainda que «nesta época de crise, estavam abertos para qualquer pessoa necessitada, quer surjam por razões económicas, quer sejam
toxicodependentes ou outras razões». 
 
«Podem escolher roupa, um agasalho ou o que lhes der jeito».

Sem-abrigo contra a burocracia e a falta de respeito

João Lourenço tinha-se mostrado muito satisfeito com a ideia de uma reportagem sobre os sem-abrigo na noite de Natal. João Carlos Costa Lourenço (conhecido por João Lourenço, mas que, segundo o próprio, é nome fictício) disse «ter muito gosto» em receber-nos, a mim e ao fotógrafo, para cearmos com ele, com o irmão e mais um amigo.
 
 
Segundo ele, vive «numa tendinha e tem tudo o que é preciso. Até luz». Depois de explicar como fazia para a conseguir, informou muito orgulhoso que «também tinha uma hortazinha e nesta altura tinha posto até umas luzinhas de Natal». «Vamos comer bem, sou cozinheiro de profissão e não nos vai faltar nada. Tenho azeite e mais que azeite, bacalhau, tudo, tudo o que possa imaginar», disse. Perguntámos com o que podíamos participar para a ceia e ele respondeu com um largo sorriso: «as vossas pessoas». De repente, lembrou-se e disse: «olhe, pode levar um bolo-rei que o meu irmão gosta muito. Vamos ter polvo, cabrito e bacalhau». Entretanto, segredou-me a razão do seu contentamento: tinha «muitas saudades de quando era miúdo e havia muita gente à  mesa… uma mesa enorme, a minha mãe a chegar com tachos e mais tachos e ela e o meu pai sempre a discutirem… desta vez ainda vamos ser alguns».
 
Combinámos então o local de encontro onde ele nos iria buscar e lá chegados, às 20h00 em ponto, nem vivalma. Esperámos cerca de 5 minutos e, de seguida, resolvemos procurar nas redondezas. Finalmente, largos minutos passados, à chuva, já bem longe do carro, encontrámo-lo junto a uma moradia que estava para vender ou alugar. Estava sozinho e muito triste. Tinham-lhe «prometido uma garagem para poderem estar mais aconchegados na noite de Natal». Afinal tudo saiu gorado!
 
Largos minutos passados, à chuva, fomos encontrar João Lourenço junto a uma moradia empurrando um carrinho de obras, completamente cheio de sacos e ao de cima um machado enorme
 
João Lourenço estava muito zangado «por o terem intrujado e estar a falhar com o seu compromisso». Empurrava um carrinho das obras, completamente cheio de sacos e, ao cimo, um machado enorme, enquanto falava sozinho. Aparentemente, iria «sacar a luz» para ter o conforto necessário na garagem que não chegou a ser cedida ou a existir.
 
Tentámos desdramatizar a situação e propusemos-lhe fazer na mesma uma pequena entrevista na tendinha dele enquanto ele cozinhava. Pediu desculpa, e disse-nos que não podia aceitar porque nos queria «mostrar o lugar onde vivia, asseado e bonito, e não nas condições em que se encontrava agora».
 
Pediu para que a reportagem passasse para a passagem do ano. Não podíamos, não estaríamos no Porto... Mesmo assim, João Lourenço disponibilizou-se para responder às questões todas que lhe quiséssemos colocar.
 
Era difícil. Não parava de falar. Algumas informações estavam desencontradas, como por exemplo a sua data de nascimento, no dia 8 de Outubro de 1957, quando pouco tempo antes nos tinha dito que tinha 57 anos. Confrontado com a situação, uma vez que afinal teria 55 anos, assumiu que «já nem dizia coisa com coisa». Estava muito triste. Confidenciou-nos que era «o seropositivo mais antigo em Portugal e se calhar até da Europa - tinha 22 anos daquela doença».
 
Falou-nos da razão pela qual não recebia qualquer subsídio ou rendimento. Das burocracias intermináveis a que tinha sido sujeito com uma assistente social (...). Falou-nos na promessa de emprego no Hotel Tuela, onde «tinha sido considerado a pessoa mais indicada para o lugar por saber falar três línguas e até alemão». Depois, afinal, quando se apresentou ao serviço, o senhor disse-lhe «que não sabia que o lugar já tinha sido ocupado».
 
A propósito da estigmatização a que tem vindo a ser sujeito, falou-nos dos «ciganos, diferentes dele porque são nómadas e, no entanto, têm direito ao rendimento mínimo». João Lourenço diz ter «bilhete de identidade, residência, um historial e eles [Estado e Segurança Social] não reconhecem os direitos dele». Acrescentou, ainda, que nada tem «contra os tuberculosos, mas esses podem andar por aí a tossir que ninguém foge deles e de quem tem VHI fogem como se pudessem ser contagiados só por falar»... 
 
Quisemos levá-lo à tendinha dele para o ajudar a carregar as suas tralhas, mas ele insistiu que não e que até lhe fazia bem ir assim. Perguntámos-lhe como ia ser o Natal dele, ao que respondeu: «sentado na cama, em frente ao meu irmão».  Deixámos-lhe as nossas prendinhas, um par de meias quentinhas para cada um, o nosso bolo-rei e a nossa garrafa de vinho do Porto para lhes fazerem companhia. Despedimo-nos com um abraço.
 
Fontes

Fotos: Fátima Araújo (associações) / João Grilo (rua)

Artigo factual da responsabilidade de quem o assina.
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