Nova Constituição egípcia é o alvo da revolta das minorias

22-12-2012

A instabilidade social tem dominado o período de transição de regime do Egipto, colocando a ferro e fogo a população, que se divide entre o apoio incondicional a Mohamed Morsi, novo presidente egípcio, e a contestação veemente da sua liderança, acusada por muitos de não representar a totalidade do povo egípcio. A indignação fez-se ouvir depois do decreto constitucional outorgado por Morsi, que ampliava os poderes do presidente, e desde então tem subido de tom, numa escalada de confrontos dos quais já resultaram dez mortos e cerca de setecentos feridos.


Barreira de arame farpado em frente ao palácio, no Cairo.
[fonte: Reuters, Mohamed Abd El Ghany]

Depois da Primavera árabe e da queda de Hosni Mubarak, o Egipto está de novo envolto numa comoção social e política onde se discute o futuro constitucional e democrático da nação. O dia 15 de Dezembro, data em que a nova constituição foi sujeita a referendo (1ª volta), ficou marcado por alegadas violações de voto e pressões à boca das urnas, acções ilegítimas que são resultado da disputa entre os opositores de Morsi e a maioria dos muçulmanos ortodoxos, apoiados pela Irmandade Muçulmana, que dá suporte ao actual presidente eleito. Os confrontos civis tiveram início depois da promulgação do decreto constitucional que alargava os poderes de Mohamed Morsi, no dia 22 de Novembro, e prolongam-se desde então. Várias manifestações tiveram lugar nas imediações do palácio presidencial, na capital, Cairo, onde os protestantes apontaram o dedo à «guinada democrática» dada pelo presidente, acusado de conferir a si mesmo, através da promulgação do decreto, poderes ilimitados. O descontentamento levou à praça Tahrir milhares de pessoas indignadas perante tal acto. A manifestação alastrou até à residência oficial do presidente, onde ocorreram embates entre os opositores do regime e os defensores de Morsi.


Protestos em frente ao palácio presidencial.
[fonte: Reuters, Mohamed Abd El Ghany]

A primeira semana de Dezembro viu a violência entre o povo egípcio subir a níveis brutais. Os acampamentos montados pelos opositores do presidente em torno do palácio mostravam que os protestos e os gritos de revolta tinham vindo para ficar: «Abaixo, abaixo a Irmandade Muçulmana!», era a frase de ordem. Em resposta aos protestos pacíficos, as milícias da Irmandade, da qual Morsi foi militante, carregaram sobre a multidão, causando vários feridos: «Quem viveu e viu isso com os próprios olhos não pode mais ter confiança neles. Vimos as imagens e vivemos nas ruas o modo como as milícias da Irmandade carregaram sobre as pessoas», afirmou Abdul Bar Zahran, membro fundador do partido dos Egípcios Livres. A opinião é partilhada por grande parte da população, que vê com descrédito a atitude da Irmandade, cuja actuação tem garantindo, através da violência, uma sólida base de suporte às iniciativas políticas de Morsi. Grande parte das facções políticas da oposição rejeitava a votação do referendo, por ser contra os princípios fundamentais da nova constituição, redigida pela Assembleia Constituinte. «Nós tememos que os direitos fundamentais venham a ser restringidos e deixem de estar ancorados na nossa Constituição», alertou Zahran, sublinhando o facto de a Assembleia ser maioritariamente composta por membros islamitas, afectos à ideologia fundamentalista da Irmandade. O perigo de a nova Constituição emanar de identidades religiosas e não de princípios democráticos de igualdade e liberdade foi, desde o início, a maior ameaça contra a heterogeneidade do povo egípcio, que sentiu, no processo de elaboração do texto constitucional, o domínio da vontade islâmica, como atesta a afirmação de Ziad Bahaa al-Din, advogado: «Todo o Egipto – incluindo todos os seus peritos jurídicos, constitucionais e académicos, líderes sindicais, organizações não-governamentais, juízes, intelectuais, homens e mulheres, muçulmanos e cristãos, jovens e velhos – serão representados na assembleia constituinte por 50 pessoas, enquanto os membros do parlamento, afectos à ideologia islâmica, reservaram a restante metade só para si.»

A Constituição da discórdia

O processo de elaboração da nova Constituição, em Março, foi dominado pela pressão da Irmandade Muçulmana e pela clara ingerência de interesses político-religiosos conotados com a maioria islâmica presente na Assembleia. A discórdia instalou-se e foi progressivamente cavando um fosso entre a maioria religiosa e as minorias de diferentes orientações políticas, credos e etnias. Ahmed Said, um dos líderes do partido dos Egípcios Livres e membro da Frente de Salvação Nacional, mostrou a sua indignação: «Não entendo como depois de tudo isto querem aprovar uma Constituição que não representa todos os egípcios.» A contestação alastra ao povo, como confirma Hermes Fawzi, manifestante que ocupou as proximidades do palácio: «Uma Constituição sem consenso não pode ser referendada», aludindo à decisão do passado dia 15, concluindo que «não é lógico que apenas uma parte da sociedade faça a Constituição». A Amnistia Internacional, através da directora adjunta para o Médio Oriente e Norte de África, foi peremptória na análise do documento, classificando-o de desilusão para o povo que, há quase dois anos, derrubou Mubarak: «O processo falhou desde o começo e tornou-se cada vez menos representativo. Exortamos o presidente Morsi a colocá-lo no caminho certo, envolvendo todos os sectores da sociedade e respeitando a soberania da lei», aconselha Hadj Sahraoui, para que o resultado se coadune com uma «Constituição que consagre os direitos humanos, a igualdade e dignidade».

A condução tendenciosa dos trabalhos relativos à nova constituição foi criticada também pelo Minority Rights International Group, ao expressar a sua preocupação quanto ao espírito do texto, que pretere as minorias em favor de uma concepção islâmica de Estado e de sociedade civil. Um terço da Assembleia abandonou o cargo, num acto de protesto. O director de Políticas e Comunicações da organização, Carl Soderbergh, alertou para a necessidade de não deixar de fora «as mulheres, as minorias religiosas e étnicas», juntando-se assim aos apelos de um grupo de peritos em direitos humanos, das Nações Unidas, que partilham a mesma visão: «Estamos preocupados pelo facto de as mulheres não terem sido devidamente representadas na Assembleia Constituinte encarregada de elaborar a nova Constituição».

A ameaça do fundamentalismo islâmico

A islamização da legislação é o grande factor que tem impulsionado os actos de revolta dos contestatários de Morsi, que temem uma ditadura de carácter religioso. O próprio presidente fora membro da Irmandade Muçulmana até ao dia da tomada de posse. Esta organização religiosa tem sido o braço direito de Morsi, defendendo a nova Constituição e repelindo os movimentos sociais contrários aos seus ideais, através da sua facção militar, que desencadeou a violência nos últimos dias, com disparos sobre os manifestantes. As mortes provocadas confirmam o passado fundamentalista da sociedade religiosa, que tem nas suas raízes laivos de influência fascista, como explica Peter Levenda, autor da obra Unholy Alliance, evidenciando ligações entre oficiais das SS e a Irmandade, na criação de uma «gestapo egípcia», depois do fim da Segunda Guerra Mundial.

A violência colocada em prática pela Irmandade Muçulmana tem sido duramente criticada, inclusivamente pela Human Rights Watch, que tem denunciado os abusos perpetrados pelos fundamentalistas contra manifestantes contrários a Morsi. Entre disparos, mortes e detenções ilegais, a Irmandade Muçulmana não fica só nas críticas tecidas pela organização não-governamental: «Em vez de condenar detenções ilegais e abusos de direitos perto do palácio presidencial, o presidente Morsi falou em desfavor das vítimas», afirma Joe Stork. Das dez vítimas mortais, três são afectas à Irmandade, tendo ido a enterrar no dia 7 de Dezembro, onde se entoaram cantos de louvor ao Islão: «Sacrificamos o nosso sangue e alma pelo Islão».

Ao projecto constitucional que atropela os direitos das minorias, junta-se a actuação do novo presidente, que avançou com o decreto que lhe outorgaria poderes ilimitados, sobrepondo-se aos restantes órgão soberanos. «Se nós aceitarmos isso, então será o nosso fim. Pois dessa forma, ele agrega Executivo, Legislativo e Judicial numa mão só. Ele é agora um faraó», descreve Schahier, um jovem de militância liberal. Mesmo depois de decidir pela anulação do decreto, Morsi não evitou a desconfiança do povo egípcio quanto às suas intenções – o acto é visto como uma manobra política, a fim de a implementar uma possível ditadura islâmica no país.


Polícia antimotim ao fundo, enquanto os manifestantes entoam cânticos contra a Irmandade Muçulmana, durante um protesto em frente ao palácio presidencial, no Cairo.

A concertação e o protesto do Movimento 6 de Abril

Depois do controverso decreto, o Movimento 6 de Abril, que meses antes tinha demonstrado o seu apoio a Morsi, retirou qualquer suporte ao líder eleito. Esta organização juvenil que desempenhou um papel fulcral no desenrolar da revolução egípcia de 2011, iniciando acções concertadas de protesto através da Internet que depois se materializaram nas manifestações da revolta árabe, encabeçou, desde 24 de Novembro, várias marchas pela capital, enchendo a praça Tahrir, numa clara censura a Morsi, de bandeiras e slogans socialistas de carácter revolucionário contra o sucessor de Mubarak e contra a Irmandade Muçulmana: «A Irmandade usou a religião para nos mentir!» ou «Oh Irmandade, o Egipto é para todos os egípcios!».

O Movimento 6 de Abril, juntamente com o partido Social Democrata Egípcio, o partido da Constituição Liberal e o partido da Coligação Popular, planeou uma vaga de protestos que culminou com a grande manifestação do dia 30 de Novembro, onde o consenso contra a governação foi claro: «Isto não é bom para o Egipto, especialmente depois dos sacrifícios feitos antes e depois da revolução. Vamos a Tahrir para nos juntarmos às outras forças revolucionárias porque todos estamos furiosos. Estão a forçar-nos a aceitar o status quo. Aceitámos Morsi como presidente mas se ele não age como presidente de todos os egípcios, não o aceitaremos», declarou Hana Abul-Ghar, um dos líderes do partido Social Democrata Egípcio. Os milhares de protestantes cercaram o palácio, supervisionados por tanques, mantendo a tensão e obrigando Morsi a sair sob escolta da polícia antimotim.

Depois do tumulto da Primavera Árabe, o Egipto atravessa nova encruzilhada rumo a um novo regime político que se anseia democrático. Mas o caminho a percorrer até lá afigura-se sinuoso. Os actos governativos de Morsi têm instigado à violência civil e à desagregação de um povo outrora unido em torno de um objectivo comum, expondo a heterogeneidade de um país que se divide entre o poder da religião e a inexperiência pluralista que se exige a uma sociedade equitativa e protectora dos direitos de cada um, sem excluir minorias étnicas, religiosas, jovens, velhos, homens ou mulheres. O medo de uma ditadura islâmica, auxiliada pela supervisão da regenerada Irmandade Muçulmana, é um pesadelo que grande parte da população não quer ver tornado realidade, apesar de a vitória do «Sim», com 56%, na primeira ronda do referendo, fazer antever um novo fulgor para Morsi e para a sua nova Constituição. Apenas no Cairo uma maioria de 57% de votantes (em seis milhões) derrotou a constituição proposta.

Na primeira ronda, de um universo de 26 milhões de votantes votaram 32%.

A segunda ronda do referendo realiza-se hoje, 22 de Dezembro, e segundo algumas fontes o eleitorado que vai agora às urnas é mais conservador do que o da primeira ronda.

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