Estivadores europeus em luta contra desregulamentação furtiva do trabalho

16-12-2012

O Sindicato dos Estivadores do Centro e Sul vai prolongar até 7 de Janeiro a greve parcial de algumas horas num dos turnos, acrescida de recusa de qualquer serviço que tenha como origem ou destino o porto de Leixões. Entre 31 de dezembro e 07 de janeiro, os trabalhadores dos portos de Lisboa, Aveiro, Figueira da Foz, Setúbal e Sines «abster-se-ão de prestar quaisquer funções ou serviços que tenham por objecto a movimentação de cargas que, por via marítima, ferroviária ou rodoviária, provenham do porto de Leixões ou que se destinem a esse porto».

Além disso o sindicato dos estivadores vai pedir a declaração de inconstitucionalidade da nova lei para o trabalho portuário. Os representantes dos trabalhadores disseram no Parlamento que o diploma viola a constituição e a lei laboral.

«Se o governo quer aplicar ao conjunto dos portos portugueses o modelo de trabalho de Leixões, trabalho escravo e ilegal face à actual Lei, e onde já 2/3 dos trabalhadores são precários ou subcontratados, como explica o sr. Sec. de Estado que a THC (Terminal Handling Charge – taxa aplicada aos exportadores e importadores pela movimentação dos contentores nos terminais) seja igual ou muito semelhante nos portos de Lisboa e de Leixões, quando se alega pretender, com esta Lei, reduzir em 30% a factura portuária?» – Estivadores de Portugal.

 

Em Setembro/2012 Siim Kallas deu a conhecer a intenção de liberalizar os serviços portuários, por meio do chamado Pacote Portuário 2. Os argumentos invocados são os do costume: reduzir custos, aumentar a competitividade. Siim Kallas (da Eslováquia) é comissário dos Transportes na Comissão Europeia (braço executivo da União Europeia). Com o anúncio do Pacote 2 reacendeu-se um conflito com os estivadores europeus que já vinha de 2003 e cujos reflexos temos visto em Portugal.

Qual competitividade europeia?

Dois terços (em valor) do comércio externo europeu passam pelos portos. Este número basta para se compreender a importância da actividade e dos conflitos em causa.

A campanha europeia de liberalização do trabalho portuário tem sido testada em Portugal e na Grécia – se tudo correr «bem» (do ponto de vista neoliberal), as novas medidas serão alargadas a toda a Europa. Estas experiências culminaram recentemente na elaboração de um novo diploma legislativo para o sector que facilita a progressiva precarização e dispersão dos trabalhadores, com anulação prática de toda a contratação colectiva e da organização de classe.

A utilização de Portugal como «laboratório» de experiências legislativas e laborais resulta evidente – a actividade portuária portuguesa é insignificante à escala europeia; não tem arcaboiço para concorrer seriamente com os gigantes portuários europeus. Os porta-vozes do Governo português têm-se esforçado por fazer crer à população que os portos nacionais são de enorme importância na concorrência e competitividade com a Europa, mas basta olhar para o mapa dos maiores portos europeus para perceber o disparate dessa afirmação:

O volume de capital fixo investido nos portos portugueses, por muito elevado que possa parecer à escala do olhar nacionalista, é na verdade insignificante à escala europeia. Perante este desinvestimento de capital fixo, não faz sentido atirar as culpas da falta de desenvolvimento portuário português para cima dos trabalhadores. Para quem já viu ao vivo a dimensão dos portos portugueses, mais forte e explícita do que os dados numéricos do mapa exposto acima é a imagem dos grandes portos europeus – por exemplo, este relance parcial do porto de Felixtowe, onde a quantidade e dimensão das gruas ultrapassa a soma dos portos portugueses:

Resta ainda perguntar: como é possível que um Governo que desinveste na rede nacional de transportes ferroviários (ou seja, no escoamento estratégico dos portos em direcção à Europa) ainda pretenda convencer-nos de que está a trabalhar para a competitividade a nível europeu? Sem dúvida os portos portugueses são importantes para o eixo estratégico definido pelo Governo: apostar nas exportações, abandonar o consumo interno. É neste âmbito que se coloca a pergunta seguinte.

O que está verdadeiramente em causa neste confronto?

Como já referimos na capa do nosso caderno sobre os estivadores, tudo indica que o peso do trabalho no custo final da factura apresentada ao cliente seja pouco significativo – muito mais pesado é o valor das rendas cobradas pelo Estado e pelas administrações portuárias, entre outros factores, como o próprio Governo demonstra nos seus estudos e relatórios.

Mas então, se a questão económica (custos do trabalho portuário) não é verdadeiramente relevante, como se justifica o ataque em curso às relações laborais estabelecidas contratualmente e a fúria de precarizar os trabalhadores? A razão mais provável tem a ver com a posição dos estivadores (bem como todos os trabalhadores dos transportes) na cadeia de produção-distribuição. Enquanto os estivadores constituírem uma classe unida, consciente do seu lugar nessa cadeia e organizada em movimentos associativos fortes, eles constituem uma ameaça ao poder discricionário das autoridades e das empresas, ao prosseguimento de medidas neoliberais. Precarizá-los, torná-los móveis (quebrando-lhes a ligação permanente ao local de trabalho e aos outros trabalhadores), minar a força das suas associações de classe através da desvinculação laboral são as armas estratégicas que permitirão aos poderes políticos e empresariais governar o sector portuário a seu bel-prazer e verem-se livres duma ameaça que certamente lhes tira o sono: o poder efectivo de contestação – no âmago das políticas económicas neoliberais – por parte dos estivadores.

Sendo assim, estaríamos perante razões essencialmente políticas, e não económicas. Acresce que uma eventual vitória dos estivadores – aqui e em toda a Europa – poderia resultar altamente moralizadora para a resistência de todos os outros sectores e movimentos sociais.

A consciência de classe dos estivadores é internacional

Os estivadores de toda a Europa têm dado provas de compreenderem bem o seu papel, como um todo, a nível europeu. Esta consciência expressa-se – além de outras formas de luta localizadas – nas greves e actos de solidariedade com os estivadores europeus. Eles sabem que Portugal (juntamente com a Grécia) é neste momento o «laboratório» onde se prepara a receita a ser aplicada por toda a Europa.

No passado dia 11 de dezembro realizou-se em Barcelona a Conferência Europeia de Estivadores, com a presença de estivadores da Dinamarca, França, Grécia, Itália, Portugal, Suécia, Reino Unido, Malta, Bélgica, Alemanha, Noruega, Holanda, Espanha, o IDC (International Dockworkers Council) e a ITF (International Transport Workers’ Federation), assim como representantes de ILWU (International Longshore and Warehouse Union) dos EUA. A conferênca analisou a situação actual e estabeleceu um conjunto de linhas de acção e resistência. O plano liberal em curso foi designado por alguns como «desregulamentação furtiva do trabalho da estiva». Foi criado um Comité Conjunto de Ligação entre o IDC e a ITF, que reunirá em janeiro para concretizar no primeiro trimestre de 2013 medidas de protesto contra as políticas neoliberais que «estão a destruir o emprego e a minar as condições laborais» dos trabalhadores portuários.

O espírito da conferência ficou expresso na Declaração de Barcelona, «aprovada por todos os presentes». Nesse documento os estivadores manifestam também a sua vontade de contribuir para o diálogo social europeu no sector portuário, não só a fim de contribuírem para a excelência dos portos europeus, mas também para manter a dignidade do emprego e requerer aos operadores portuários (empresas e autoridades portuárias) que participem nesse diálogo social.

Uma luta que desde 2003 vem somando algumas vitórias

A campanha liberalizadora dos governos europeus não é inédita – já antes tinha sido tentada (e derrotada) em 2003 e 2006. Durante as últimas semanas assistiu-se a manifestações e paralisações dos portos, a fim de dissuadir os eurodeputados de aprovarem os pacotes de medidas portuárias.

Entretanto a luta não acaba aqui, pois os sindicatos tiveram notícias de que a Comissão Europeia (de novo pela mão de Siim Kallas) prepara para 2013 novas propostas de desregulamentação do trabalho, em nome da «eficácia portuária» – vem aí o Pacote Portuário 3. Os sindicatos, no encontro internacional de 11/12/2012 em Barcelona, decidiram opor-se a mais esta ofensiva do comissário.

«Portugal pode ser visto como um laboratório para as políticas portuárias europeias», avisou Samuelsen no Encontro Marítimo da ITF em Casablanca, já em data anterior. «Várias medidas avançadas pelo Governo português correspondem integralmente às propostas que estão na calha em toda a Europa.»

Esta consciência internacional deu origem, em diversos portos da Europa, a greves de solidariedade com os estivadores portugueses e até à sua presença na manifestação de 29/11/2012 em Lisboa.

«Numa indústria global, a manutenção da regulamentação colectiva e dos direitos sindicais é uma questão global, e não apenas nacional ou regional» – Paddy Crumlin, presidente da ITF.

A Comissão Europeia defende o estabelecimento de regras uniformes em toda a UE, com base no argumento de que a situação laboral varia imenso de país para país, distorcendo a competição entre países. Entretanto, apenas 8 dos 27 membros da UE ratificaram o Acordo sobre o Trabalho da Estiva (de 1973) da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Esta convenção encoraja o vínculo contratual permanente e garante a prioridade de contratação aos estivadores registados. Acrescente-se que apenas 9 membros da UE-27 ratificaram o acordo da OIT de 1979 sobre segurança e saúde no trabalho das docas. Se alguma alteração de atitude por parte dos governos há a defender, parece ser mais do lado da subscrição dos acordos e garantias internacionais do trabalho...

Fontes
Informação proveniente dos movimentos sociais, com edição da responsabilidade de quem a assina.