por RVP
A importância da luta dos estivadores em 2012-2013
A luta dos estivadores reveste-se de invulgar importância na fase actual que o país atravessa, por dois motivos maiores:
Primeiro, porque a distribuição, transporte e armazenamento dos produtos mercantis são um elo indispensável da cadeia comercial – os trabalhadores dos portos e dos transportes ocupam uma posição estratégica na cadeia de produção e distribuição.
Depois, porque no centro da luta dos estivadores encontramos um conjunto reivindicações que interessam à generalidade dos trabalhadores portugueses – não se trata de uma luta limitada ao âmbito dos interesses corporativos e económicos daquele sector de trabalho. O que está em causa são os direitos e a dignidade do trabalho em geral.
Finalmente, porque a posição privilegiada dos estivadores na cadeia de distribuição e o seu confronto com a ganância de lucro das empresas intermediárias não pode deixar de nos fazer pensar no significado e consequências de algumas das políticas neoliberais.
Os trabalhadores da estiva, sobretudo aqueles que beneficiam de um contrato de trabalho sem prazo (os chamados efectivos, porque os outros, os precários, se vêem de pés e mãos atados no confronto com o patronato), estão em luta contra a precarização do trabalho na globalidade dos portos europeus. Portugal parece estar a servir de cobaia do neoliberalismo dentro do sector portuário.
A razão invocada por patrões e governantes para alterarem (desregulamentarem) as relações de trabalho, livrarem-se dos trabalhadores efectivos e recorrerem a trabalhadores precários é, como sempre, a da competitividade e redução dos custos do trabalho. Uma razão esfarrapada, porque o custo do trabalho na factura dos serviços portuários portugueses parece ser reduzida. Pesado é o custo das taxas aplicadas pelas autoridades e empresas portuárias (aportagem, parqueamento e armazenamento, direitos de passagem, lucros de serviço, etc.). Ainda não vimos alguém do Governo ou das associações patronais vir a público com estudo factuais, facturas e balanços, para provar a veracidade das suas alegações. Em vez disso, o que ouvimos são versões adaptadas de um expediente muito em moda: os responsáveis dos poderes políticos e económicos, quando confrontados com os microfones e câmaras, improvisam o primeiro número que lhes vem à cabeça no fito de sustentarem a conclusão que querem vender ao público. É assim que António Borges inventa de repente, a meio de um debate, que as funções sociais do Estado são responsáveis por 70% dos gastos do Estado – número muito evidentemente tirado à pressa da cartola e rapidamente adoptado por todos os ministros, quer por lhes soar bem, quer por confiarem que ninguém irá verificar as parcelas do orçamento de Estado, quer por não se darem conta de que esse valor, ainda assim, é inferior à totalidade da tributação dos trabalhadores (principais beneficiários do estado-providência). No caso dos estivadores, os poderes políticos e económicos atiram aleatoriamente com o número 30% para exprimir o peso do trabalho nos custos da actividade portuária, e por fim já há até quem fale em 80%.
O dominó dos custos e dos lucros
Segundo informação divulgada na Apibarra (Associação dos Pilotos de Barra e Portos) e proveniente dum artigo de Transportes & Negócios (16/03/2009),
«A partir de 1 de Abril [de 2009], os portos nacionais voltarão a aplicar os valores da TUP navio e TUP carga [TUP = taxas de uso do porto] praticados em 2008. O Governo decidiu congelar os aumentos para 2009, com o objectivo de suster os aumentos dos custos dos clientes dos portos. [...] O congelamento dos aumentos das TUP navio e TUP carga deverá representar uma perda de receita para as autoridades portuárias na ordem dos 1,2 milhões de euros até ao final do ano. Em contrapartida, os operadores portuários ficam obrigados a repercutir essa diminuição de custos nos preços praticados aos clientes. Além do que terão de garantir "a manutenção dos postos de trabalho existentes", afirmou a secretária de Estado dos Transportes.»
Por outras palavras: estando as administrações dos portos e as empresas portuárias impedidas fazer subir a facturação apresentada aos clientes que necessitam de carregar, descarregar e parquear navios e cargas – a fim de impedir o aumento dos custos ao cliente e manter a competitividade face a outros portos europeus –, restava-lhes apenas uma via para garantir um lucro continuadamente crescente de ano para ano: cortar nos custos. Cortar no capital fixo (maquinaria e investimentos) ou cortar no capital variável (trabalho)? Evidentemente a via escolhida seria a de cortar nos custos do trabalho.
Os factos descritos no referido artigo do Transportes & Negócios revelam-nos quando e porquê se origina um dos motivos do conflito laboral actualmente em curso.
Em agosto/2012 secretário de Estado dos Transportes, Sérgio Monteiro, ao mesmo tempo que anunciava um plano «5+1» para ganhar competitividade portuária face à Espanha, afirmava que «existem taxas fixas de utilização dos portos, independentemente da utilização, que asseguram um determinado nível de lucro às administrações portuárias, mas que não funcionam como catalisador desta utilização» – esta frase bastante retorcida quer dizer que alguém nas administrações portuárias (e do Estado) está a impor taxas de exploração extravagantemente gananciosas, mesmo quando os clientes não precisam de recorrer aos seus serviços. O plano «5+1» do Governo diagnostica uma multiplicidade de problemas de gestão e competitividade – todos eles alheios aos trabalhadores e aos custos do trabalho – e revela que as taxas e rendas cobradas pelo Estado e pelas administrações portuárias são o factor que mais pesa na factura portuária e na competitividade. Acresce a isto uma oligarquia de empresas, também diagnosticada no documento, que se assenhorearam dos negócios nos portos, impedindo a livre concorrência com novas empresas e promovendo a inflação das facturas portuárias.
A 17/09/2012 os estivadores entram em luta contra a proposta governamental de novo regime jurídico para o trabalho portuário. A estratégia dos trabalhadores consiste em fazer greve às horas extraordinárias, exigindo assim a manutenção dos postos de trabalho efectivos e a admissão de novos trabalhadores sem contrato a termo, uma vez que existem provas insofismáveis de que o trabalho actual (e mais ainda os planos de expansão futura) excede os recursos humanos existentes.
Finalmente, em novembro/2012, a Assembleia da República aprova novo diploma de regulamentação da actividade portuária. Nele são impostas condicionantes jurídicas às relações de trabalho e é ele que justifica nova manifestação dos estivadores. Os estivadores de toda a Europa apercebem-se de que está aqui a ser criado um laboratório de desregulamentação do trabalho e precarização cuja receita será mais tarde aplicada a toda a Europa e deslocam-se a Lisboa para manifestarem o seu apoio aos colegas portugueses.
Alguém fez as contas?
Segundo um artigo do jornal Notícias da Madeira, a parte do trabalho nos custos totais das facturas portuárias representaria apenas 8% – «dos 10,3 milhões de euros facturados pelo operador portuário do Grupo Sousa apenas 824 mil euros foram para remunerações dos estivadores». Mas continuam a não aparecer facturas discriminadas que nos permitam avaliar a situação.
Por outro lado, vários comentadores, governantes e empresários queixam-se de que aquela percentagem seria de 30% e alguns chegam mesmo a falar em 80%. Na falta de uma amostra de facturas donde possamos tirar as teimas, tentemos fazer um exercício a contrario a partir das tabelas conhecidas. Vamos usar o Regulamento de Tarifas da APL (Administração do Porto de Lisboa) para 2012; não sendo nós peritos na matéria, vamos assumir aqui alguns riscos e fazer algumas contas na corda bamba.
- paga pelo serviço de rebocagem e pilotagem (mesmo que não necessite dele) cerca de 798 €
- paga as defensas usadas na acostagem, à razão de 109 €/dia cada uma, mais uma taxa de operação das defensas no valor de 70 €
- paga várias taxas pelo trânsito de passageiros no passadiço e noutras áreas do porto
- paga (TUP/navio) cerca de 2303 € – este valor é uma renda paga à Administração do Porto de Lisboa; ainda que incorpore trabalho de atracagem (desconfiamos que esse trabalho é pago à parte), é fácil deduzir que o custo do trabalho será marginal no custo total
- paga (TUP/carga, fracção 1) cerca de 6137 € – trata-se de mais uma renda cobrada pelo simples facto de o navio conter um certo volume de contentores estacionados no porto de Lisboa
- paga, na descarga (TUP/carga, fracção 2), cerca de 903 € – este valor é também uma renda, não inclui qualquer serviço
- paga, pelo guindaste de descarga (vamos supor que o utilizou durante 24 horas), cerca de 3343 €
- paga várias taxas horárias pelas empilhadoras, outras gruas, etc.
- se a carga ficar a aguardar transporte por mais de 5 dias, paga o seu parqueamento por metro quadrado ocupado
- etc.
Para tentarmos perceber qual é o peso do trabalho no meio disto tudo, vejamos o caso do guindaste. A taxa horária é de cerca de 140 €/hora.
Se, como dizem alguns, o peso do trabalho é de 30% na factura, então o operador do guindaste (retirada a TSU) estaria a ganhar 34 €/hora, ou seja 6000 €/mês.
Isto é um disparate, sabendo-se que o salário máximo (topo de carreira) ronda os 1700 €.
O mais provável é que o peso do trabalho nesta factura seja de 4%.
Uma vez que as autoridades portuárias e governamentais querem reduzir o custo do trabalho em cerca de 30%, isto significa que o trabalho passaria a representar cerca de 2,86% da facturação. Aproximamo-nos perigosamente dos níveis de escravatura – 2,86% de 140 € representam 4 €/hora; se forem precisos dois trabalhadores para operar a descarga com guindaste, então cada um deles irá ganhar cerca de 2 €/hora...
Tudo isto leva a crer que, do lado da governação, ninguém sabe do que está a falar; do lado do patronato não é possível crer que ninguém saiba do está a falar, e portanto encontramo-nos em presença de ganância consciente e duma desumanidade rara.
No meio de todas estas contas existem pessoas de carne e osso
Quanto às condições de trabalho em que tudo isto se passa, é imprescindível ler a entrevista publicada no Tugaleaks.