por Maria José Araújo
Assinalando a manifestação de professores no dia 26 de Janeiro, ouvimos aqui as queixas e aspirações de 6 professores acerca do estado da Escola actual. O mal-estar é claro e reconhecido.
Pretendendo dar voz aos próprios lesados, convocámos via e-mail uma série de professores para se pronunciarem acerca do panorama actual da sua profissão. Uma maioria não respondeu ou rejeitou pronunciar-se. Irremediavelmente, surgiam conotações distintas, desde a simples falta de energia ou tempo até ao medo de estarmos a voltar ao «tempo da outra senhora», por um lado e, por outro, que já nada adianta para travar injustiças ou lutar pelos direitos e deveres do cidadão.
Mesmo assim, recolhemos os depoimentos de alguns corajosos, nomeadamente Marco António, Fernanda Vieira, José Marques, Emília Antónia e Gustavo Beça, e ainda Fátima Oliveira, que não se deixam intimidar nem abater pela depressão e degradação geral do país.
Tendo em conta a diversidade de situações existentes nesta área, pedimos-lhes para que muito sucintamente descrevessem o respectivo percurso profissional, as reivindicações mais importantes segundo o ponto de vista de cada um e, finalmente, que tipo de alternativas seriam possíveis pôr em prática para o ideal funcionamento do ensino em Portugal.
Percurso profissional
No que respeita o percurso profissional, Marco António refere que não está colocado e que a seguir ao estágio profissional esteve «sempre como professor contratado para suprir diversas necessidades (doença, gravidez, reforma, aumento de turmas, etc.)». Actualmente está ligado a movimentos sociais (os quais contamos retratar brevemente, nomeadamente os projectos Es.col.a e/ou Casa Viva).
Fernanda Vieira também não está colocada. Terminou a sua licenciatura em 2000 e desde então apenas acumulou 1034 dias de serviço, apesar de ter concorrido ao longo de todos estes anos e tendo tido uma única vez horário completo.
Assumindo que prefere rever-se num discurso mais realista do que pessimista, salienta que «o lado positivo» é o facto de ter vindo a investir no seu curriculum, tendo, entre outras formações, acabado de defender a sua tese de mestrado intitulada «Satisfação Profissional e Sócio-Organizacional de Direcções de Escolas Básicas e Secundárias: Estudo Comparativo entre Escolas Públicas e Privadas» na área da Docência e Gestão da Educação».
Sem desistir, diz: «Vou virar-me para as empresas. A ver...», dado que considera que nos próximos 4 ou 5 anos não terá lugar na escola pública. Tenciona, no entanto, continuar a «concorrer mas sem esperar colocação». Está a receber o subsídio de desemprego desde Setembro de 2011 e este terminará em Abril.
José Marques também não foi colocado este ano, para seu grande espanto. «Após 6 anos de contrato numa escola do ensino básico (…) estava completamente integrado nesta instituição, e era um prazer e orgulho fazer parte dela». Durante este tempo, trabalhou «para que os alunos do concelho tivessem oportunidade de prosseguir os estudos na escola local, através de acções de promoção da escola e dos seus cursos profissionais». Acrescenta que cumpriu sempre com os seus «deveres» e a partir do momento em que foi instaurada a avaliação, foi-lhe atribuída por duas vezes consecutivas a menção de Muito Bom.
Emília Antónia e Gustavo Beça também não estão no activo. Têm actualmente 60 anos de idade. Em Dezembro de 2010, decidiram «pedir a aposentação, ao fim de quarenta anos de serviço, desiludidos com as medidas tomadas pela ministra da Educação de então». Cerca de um ano depois, obtiveram a reforma. Entretanto, desde Janeiro de 2011 viram o seu vencimento sofrer cortes de 8,3%.
Fátima Oliveira é «professora do Quadro de Escola» e lecciona Inglês há 27 anos: «na minha Escola actual, onde, dadas as convulsões introduzidas nas escolas e o facto de termos passado a ser um Agrupamento, me encontro a leccionar também aulas de AEC (Actividades de Enriquecimento Curricular) numa escola do primeiro ciclo do ensino básico».
Da sua experiência diz que «muita água correu por debaixo das pontes deste meu rio de experiências e aprendizagens e partilhas na esfera profissional. Olhando para dentro da Escola Pública, foi-me gradualmente parecendo mais activa, mais responsável, mais madura, mais bem formada e mais interventiva nos destinos do mundo, reinventando-se através do saber científico, das competências e dos padrões de diversidade geracional que veiculava, e que se foram sucedendo, deixando antever desafios cada vez mais complicados, quer na área das aprendizagens, quer na dos comportamentos e valores. Esta Escola que hoje temos sabe estar à altura dos desafios do seu tempo, porque é introspectiva e transversal».
Protestos e desilusões
Relativamente às reivindicações mais importantes segundo o ponto de vista de cada um, Marco António refere que o ensino foi essencialmente «derrotado pelas finanças».
«A escola pública está a ser desintegrada qualitativamente através do aumento de alunos por turma, a criação de mega-agrupamentos, a inadequação dos conteúdos, o facilitismo das avaliações, a obsessão pelas estatísticas, a carga burocrática, as constantes alterações directivas, a perseguição à figura do professor, entre outros».
Para este professor, «as escolas e os seus intervenientes estão cada vez mais domesticados. As políticas educativas têm desviado os professores do seu papel pedagógico, torna-se mais importante cumprir as normas do que procurar melhores métodos, o que provoca um ambiente corporativista e competitivo entre os docentes».
Já Fernanda Vieira considera que «a perspectiva de ‘empresarização’ da escola, em voga desde os anos 80, herdada de países como a América do Norte, visa a redução de custos, a todo o custo». No que respeita a Educação, tudo «se encontra reduzido a números e, quando os números imperam, questões como o conhecimento, a axiologia, entre outros, ganham um cariz secundário».
Segundo esta professora, «o sector público aproxima-se, a passos largos, do sector privado, até no regresso à figura unipessoal do ‘Director’ que marca um retorno ao pré-25 de Abril, perdendo-se a conquista democrática do ‘órgão colegial’ no que concerne a administração das escolas públicas. Vai-se violando a Constituição e a ‘Lei de Bases do Sistema Educativo’, o que sem dúvida terá as suas consequências na sociedade», conclui.
Para José Marques, «na escola pública, o único critério válido na avaliação [resume-se] aos dias de serviço somado à nota inicial de curso. Não importa se o professor é ‘um grande baldas’, ou se tem empenho naquilo que faz: basta ter tido uma nota razoável no curso e somar os dias de serviço, que isso faz dele um ‘excelente profissional’. Pode até não saber nada daquilo que deverá leccionar, mas isso não importa para a instituição».
«Se fosse numa instituição privada, ao fim de 6 anos eu já estaria em contrato a termo indeterminado, de acordo com a lei, mas na escola pública a lei não se aplica», evidencia. «Apesar de ter turmas para dar continuidade ao meu trabalho na minha escola, não obtive colocação. Nunca tinha passado por uma situação destas, e foi como se o mundo desabasse. Senti-me um inútil», desabafa.
De acordo com o que mencionam Emília e Gustavo, «do prazer de dar aulas, ensinar os alunos, desenvolver uma infinidade de actividades e receber, de sua parte, o prazer de aprender, começámos a ficar atónitos com as medidas que todos os dias chegavam à escola, em catadupa. Do prazer em conviver com os colegas e partilhar saberes, constatámos a destruição de amizades, tudo por culpa da implementação de uma avaliação ‘duvidosa/escandalosa’, para não dizer de compadrio. Começámos a observar e sentir um corrupio de actividades de quem, até essa data, nada tinha feito. Os atropelos foram-se sucedendo», afirmam.
Estes professores, que optaram pela aposentação, salientam que verificaram «que este governo (desgoverno !!!) na personagem do seu ministro da Educação, Nuno Crato, que tanto criticou as medidas das suas antecessoras (…), deu sequência às mesmas e ainda as agravou, tornando impossível o trabalho nas escolas».
E referem exemplos desde o «aumento de número de alunos por turma [à] mudança insensata dos currículos (…um caso flagrante de desrespeito pelo desenvolvimento da psicomotricidade e das tecnologias), [passando pelo] desemprego de elevado número de professores, [pela] proliferação do medo, [pela] continuação da insensata avaliação, quando não há lugar a progressão de carreiras».
«Contudo, e para nosso espanto, verificámos que, com os cortes efectuados nos ensinos básico e secundário, [o ministro Nuno Crato] criou um despacho, para o ensino superior, que permite a progressão na carreira aos professores universitários. Ou seja, tomou o lema do seu governo: dividir para reinar e privilegiou o grau de ensino a que pertence».
Para Fátima Oliveira, «à Escola moderna e proactiva, o poder político foi paulatinamente retirando o gosto por manter um rosto de rigor e exigência, promovendo mecanismos proteccionistas geradores de maior incumprimento e facilitismo (…)».
«A Escola Pública foi perdendo prestígio para o Ensino Privado (e selectivo, e agora cada vez mais comparticipado), onde ironicamente os docentes eram maioritariamente os mesmos. Mas nada se compara ao que tem vindo a acontecer desde que a carreira docente foi congelada», refere. «Um conjunto de reformas e exigências premeditadas, recheadas de um ostensivo, gratuito e mal-intencionado ataque à profissão, cujo único propósito final era e continua a ser a contenção de gastos, mas que gerou uma clivagem sem precedentes no seio de todo o professorado. (…) É inqualificável… mumificaram toda uma classe à revelia de tudo quanto possa pensar-se… Constituição, Leis do Trabalho, Sindicatos…»
«A saga continuou e o ataque feroz à Escola Pública não terminou por aqui… No ano lectivo transacto, com 26 anos de serviço, vi-me obrigada a concorrer, pois estava na iminência de ficar à sombra de um famigerado horário zero, em consequência das novas medidas (desastrosas, uma vez mais…) introduzidas no Ensino (turmas com maior número de alunos, mais horas de trabalho lectivo, menor carga horária, menos disciplinas, Centros de Formação e Certificação de Adultos encerrados, etc.). Espoliados dos nossos direitos há quase uma década consecutiva, maltratados, desrespeitados, lançados na precariedade e na incerteza de manter os nossos postos de trabalho, os professores ora debandam do ensino para a reforma ainda incrédulos e cabisbaixos, ora saem à rua para manifestar o seu descontentamento pela forma injusta e desumana como estão a ser destratados e descartados, em consequência de um penalizador pacote de medidas que atenta contra a qualidade do ensino e o direito à educação cuidada e de qualidade que assiste às novas gerações.»
Propostas e alternativas
Para melhorar o ensino em Portugal, Marco António considera que «valorizar a educação pública, gratuita e de qualidade, é construir os alicerces da nossa identidade individual e colectiva».
«Actualmente, será necessário dar condições para que os professores estejam essencialmente focados no ensino, através de uma melhor formação e um ajustamento reflectido dos conteúdos programáticos. Talvez isto seja mais importante do que construir novas escolas e oferecer computadores, depende dos casos».
Este professor defende ainda que «progressivamente um funcionamento ideal passaria pelo ensino autónomo e responsável em todas as suas vertentes, direccionado para as necessidades e desejos dos alunos e para a inclusão das comunidades próximas. Para chegar a este ponto será preciso redefinir o conceito de sucesso escolar e permitir a participação real e directa de todo o universo escolar.»
Deixando «algumas sugestões que poderiam ser positivas para o ensino e para a sociedade», Fernanda Vieira salienta a necessidade de «dar autonomia às escolas na decisão do que deve ser o currículo (entenda-se: aquilo que os alunos devem aprender na escola). Valorizar mais o ‘ensinar a pensar’ e o ‘ensinar a estudar de forma autónoma’ do que a reprodução de conteúdos memorizados)».
«Deixar reformar-se quem já não quer mais estar ao serviço do ensino (existem professores muito desmotivados pelo hiato geracional entre si e os seus alunos, e também, entre outras razões, pela perda de ‘direitos’ que de certa forma foram organizadores das suas vidas).» Por último «regressar a um órgão de direcção colegial e não unipessoal em prol da Democracia e fazer turmas com o máximo de 22 alunos.»
José Marques ainda não se refez da sua decepção. Para já, acaba de apresentar a sua tese de mestrado, que certamente lhe dará mais oportunidade de voltar a ser colocado, lamentando o facto de ainda hoje ter «muitas dificuldades em entrar naquela instituição» à qual se entregou durante anos.
Para Emília Antónia e Gustavo Beça, embora aposentados, acham ser dever deles «lutar pela salvaguarda dos direitos de quem trabalhou e descontou durante quarenta anos e apoiar os (…) colegas que enfrentam, no dia-a-dia da sua vida pessoal e profissional, angústia, desilusão e desolação». «Assim, é tempo de dizer BASTA!», terminam.
Fátima Oliveira preconiza a «desburocratização do trabalho docente; maior autonomia efectiva das escolas; melhores condições de trabalho; turmas mais reduzidas; maior oferta de cursos; currículos melhor adaptados à modernidade e às exigências do mercado; aulas de Formação Cívica e de Educação Sexual; Pais e Encarregados de Educação mais presentes e responsáveis; medidas correctivas eficazes para alunos prevaricadores; Psicólogos e Tutores para apoiar os jovens que necessitam de acompanhamento especializado; contagem do tempo de serviço dos professores na íntegra para efeitos de aposentação (no mínimo); reposicionamento dos profissionais na carreira, considerando a especificidade da sua formação para o Ensino/Via Profissionalizante como primeira prioridade; Avaliação da Carreira Docente isenta e especializada e finalmente tratamento condigno e valorização social dos Professores».
Finalizando, esta professora considera que «o país se encontra numa situação financeira extremamente grave, sabemos que os erros crassos do poder político, o nepotismo, a corrupção generalizada e a gestão danosa impunes e continuados hipotecaram o país e o Estado Social, assumimos que é importante conter gastos e canalizar os fundos que há para aquilo que se afigura ser vital para assegurar a nossa nacionalidade, mas entendemos ser muito claro que a Educação Pública é uma das prioridades a defender, porque dela depende a formação dos cidadãos e o futuro de Portugal e dos Portugueses. É esta a essência do que me levará às ruas de Lisboa no próximo dia 26/01/2013. E faço-me seguramente acompanhar de uma profunda indignação que não posso calar por mais tempo!»