por RVP
Tradicionalmente, o valor das pensões de reforma era calculado em função do número de anos durante os quais o trabalhador tinha contribuído para o seu fundo de pensões. Em 2007 o governo aprovou a introdução de um «factor de sustentabilidade» no cálculo das pensões, pela mão do então ministro do Trabalho, Vieira da Silva. Esta fórmula reduz o valor da pensão em função de um índice: a esperança média de vida em 2006, ponderada com a esperança média de vida no ano em que o beneficiário se reformou. Sobre as complexidades deste método daremos mais adiante alguns esclarecimentos.
A justificação apresentada pelos governantes para realizar este corte nas pensões prende-se com as teses da chamada catástrofe demográfica, que se podem resumir no seguinte: à medida que a esperança de vida aumenta, cada vez há mais reformados e idosos, e menos população economicamente activa a produzir; até que, segundo esta teoria, se chegaria a um ponto em que a população produtora não seria suficiente para, com as suas contribuições, sustentar o sistema de reformas. A solução, segundo os governantes, seria ou de adiar a idade da reforma (de 65 para 67 anos), obrigando o trabalhador a contribuir durante mais tempo para o fundo de pensões, ou reduzir a reforma em função da esperança média de vida. Em 2007 o governo optou pela segunda via, acrescentando uma cláusula que já deixava entrever outras medidas futuras: se o trabalhador quisesse manter o valor total da reforma e anular o corte produzido pelo factor sustentabilidade, devia trabalhar mais 4 a 12 meses além da idade da reforma.
As verdadeiras intenções dos governantes tornam-se agora claras: no preciso instante em que estou a escrever estas linhas, o ministro Vítor Gaspar vem propor que, além da aplicação do «factor sustentabilidade», seja também alargada a idade da reforma. Esta proposta pode parecer tonta, uma vez que as pessoas com mais de 40-50 anos estão a sofrer problemas de desemprego tanto ou mais graves do que os jovens – onde irão elas arranjar emprego até aos 67 anos, quando antes dos 50 já estão a ser despedidas e substituídas por trabalhadores jovens? –, mas o que importa registar é a aplicação sistemática de um vasto leque de políticas, visando todas as situações práticas possíveis e imagináveis, de forma a intensificar a carga laboral e baixar os custos do trabalho.
Os cortes nas pensões resultantes do factor sustentabilidade são progressivamente mais elevados:
2008 – 0,56%;
2009 – 1,32%;
2010 – 1,65%;
2011 – 3,14%;
2012 – 3,93%;
2013 – 4,78%.
Como se não bastassem já estes cortes, em 2012 foi criado outro, a «contribuição extraordinária de solidariedade». A conjugação destas medidas constitui o que poderíamos chamar um crime contra a humanidade, muito semelhante à eutanásia. Vejamos como é construído esse crime.
Afinal o que é a «esperança de vida»?
A esperança média de vida é um dos indicadores da qualidade de vida. Portugal, segundo um relatório da CIA, encontrava-se em 2012 em 24º lugar na lista de países com maior longevidade, com uma esperança média de vida de 82,3 anos.
O conceito de «esperança de vida» – do qual se extrai a «esperança média de vida» da população em geral – aplica-se caso a caso, ou a um conjunto tipificado de indivíduos (uma comunidade homogénea, uma profissão, uma camada social, etc.). O seu cálculo baseia-se em estatísticas que medem a média de longevidade da população em estudo. Mas esta média não é uniforme em nenhum dos seus aspectos. Por exemplo, depende da idade da pessoa em estudo. Ao nascer e durante a primeira infância, a pessoa está sujeita a um conjunto de factores (robustez, malformações, acidentes, contágios de diversos tipos para os quais ainda não está preparada ou vacinada, etc.) que determinam a sua esperança de vida; à medida que caminha para a idade adulta, ou seja, se entretanto não morreu, aumentam as suas hipóteses de longevidade. Em cada momento da vida, a esperança de vida varia; por isso o seu cálculo rigoroso e cientificamente honesto é feito por faixas etárias e por sexo, e não para toda a gente em geral. Na Guiné-Bissau, por exemplo, a mortalidade infantil é de 126/1000; em Portugal é de 5/1000 (média dos anos 1995-2010). Esta diferença entre Portugal e a Guiné-Bissau permite-nos perceber imediatamente que a esperança de vida está intimamente ligada ao acesso a cuidados de saúde, alimentação, educação, etc.
O estudo da longevidade das diferentes camadas da população revela-nos uma longa série de factores sociais determinantes. Um deles é bem conhecido da medicina do trabalho: certas profissões provocam doenças que encurtam a vida. Mas o número de anos médio que uma pessoa pode esperar viver também depende da classe social, do rendimento familiar, e até do grau de stress provocado pelos conflitos sociais em que está envolvida – não se pode esperar que uma pessoa sujeita à aflição da constante incerteza quanto ao seu futuro viva tanto como outra que vive confiante, relaxada, sabendo que ao atingir a idade da reforma (ou outra circunstância que a incapacite para o trabalho) terá uma pensão de valor fixo e suficiente para sobreviver, acesso a cuidados de saúde e apoio social.
Por outro lado, o conceito de «esperança média de vida», para o comum cidadão, não pode significar grande coisa; significa tanto como dizer-se que o rendimento médio bruto em Portugal é de 1300 euros por mês – pode ser matematicamente verdade, mas não corresponde necessariamente a uma realidade concreta, como o leitor (já agora, o leitor médio) poderá constatar, perguntando a todos quantos o rodeiam quanto têm por mês para viver.
Os estudos estatísticos demonstram que os ricos vivem mais que os pobres. E quem sofre mais de stress (e portanto tem pior qualidade de vida e morre mais cedo) não são os ricos nem os gestores, mas sim os trabalhadores sujeitos a tarefas repetitivas, monótonas e sem autonomia nem poder de decisão. A esperança média de vida de um trabalhador das caixas registadoras de supermercado nada tem a ver com a do sr. Belmiro de Azevedo.
Portanto, quando vos falarem de «esperança média de vida», perguntem imediatamente: esperança média de vida para quem?
Os cortes no acesso aos cuidados de saúde alteram a esperança média de vida
O modelo proposto pelo factor sustentabilidade é completamente disparatado: é calculado com referência a uma época anterior, que já pouco tem a ver com a actual. À medida que é retirado o acesso universal aos cuidados de saúde, que o custo da saúde aumenta (até se tornar incomportável para largas camadas da população que neste momento vivem abaixo do limiar de pobreza), que quase milhão e meio de portugueses é atirado para o desemprego, a esperança média de vida cairá necessariamente a uma velocidade assustadora, atirando-nos para níveis de qualidade de vida que provavelmente tenderão a aproximar-se dos registados antes da existência de uma segurança social universal – ou seja, pré-1980.
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Esperança de vida
à nascença |
Esperança de vida
aos 65 anos de idade |
Mortalidade infantil
(por mil) |
1970
|
67,1
|
13,5
|
55,5
|
2010
|
79,6
|
18,8
|
2,5
|
2011
|
-
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18,8
|
3,1
|
Por esta tabela se vê o longo caminho percorrido, e quão fácil é regredir quando retiramos a condição que permitiu percorrer esse caminho: a segurança social, o acesso universal aos cuidados de saúde tendencialmente gratuitos e a melhoria dos rendimentos dos trabalhadores.
O índice de «sustentabilidade» usado para cortar as pensões de reforma é o de quando Portugal ainda se situava entre os 25 países mais civilizados do mundo. Mas a realidade que se está a viver agora é a de doentes renais que morrem silenciosamente por falta de acesso a sessões de hemodiálise, é a de doentes de cancro a quem é negado tratamento e até atendimento médico, é a de gente sem dinheiro para comprar medicamentos.
As verdadeiras intenções das leis que introduziram o factor de sustentabilidade revelam-se face a uma pergunta elementar: que acontece se a esperança média de vida diminuir? O factor é aplicado no sentido inverso? As pensões aumentam? – não, a lei apenas prevê o corte, porque é essa a sua verdadeira intenção, e não a sustentabilidade do sistema.
O governo não leva em linha de conta a única coisa significativa: o emprego e o investimento
Pouco importa se uma sociedade, seja ela ocidental e moderna ou cavernícola, tem muitos ou poucos incapazes para trabalhar. A única coisa que conta realmente para a sustentabilidade do sistema de solidariedade (a segurança social, no nosso caso) são os recursos colectivos, o rendimento dos trabalhadores, o sistema de redistribuição (política fiscal), a taxa de exploração do trabalho, a política de emprego, o investimento de capitais para tornar cada hora de trabalho mais produtiva.
Ora o governo, conforme está expresso no último Relatório do Orçamento de Estado, aposta no desemprego, subtraindo assim recursos à segurança social e aos fundos de pensões. Além disso todos os indicadores mostram o crescente desinvestimento de capitais na produção. Todos estes factores juntos diminuem os recursos colectivos e portanto debilitam os fundos de pensões.
A sustentabilidade da segurança social pode ser um problema, de acordo, não por causa duma suposta catástrofe demográfica, mas sim por causa duma catastrófica política de desinvestimento, desemprego e embaratecimento da mão-de-obra.
Os cortes nas pensões: um roubo descarado
Já no livro Quem Paga o Estado Social em Portugal? tinha ficado demonstrado que todas as funções sociais do Estado (incluindo as pensões) eram suficientemente financiadas pelas contribuições e impostos pagos pelos trabalhadores. Este estudo referia-se aos anos 1995-2011. Em relação a 2012 Eugénio Rosa mostra-nos que os montantes das contribuições entradas continuam a produzir um saldo positivo.
Anos 2011/2013
Rubricas
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2011
milhões € |
2012
milhões € |
2013
milhões € |
Receitas Fiscais (impostos)
|
40.352,3
|
38.583,8
|
41.476,5
|
Contribuições sociais
(Segurança Social e CGA) |
20.926,9
|
19.383,6
|
20.114,5
|
Total (da Receita)
|
61.279,2
|
57.967,4
|
61.591,0
|
Despesas com Pessoal
|
19.425,7
|
16.661,4
|
17.285,9
|
Prestações sociais
(inclui Segurança Social, CGA, e saúde) |
37.623,9
|
36.851,9
|
37.628,9
|
Total (da despesa)
|
57.049,6
|
53.513,3
|
54.914,8
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Saldo (Excedente)
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+ 4.229,6
|
+ 4.454,1
|
+ 6.676,2
|
Significa tudo isto que não há falta de dinheiro para pagar as pensões. Há, sim, um descarado desvio desses dinheiros. É um vulgar assalto de rua, levado a cabo por interesses privados, sendo que a navalha de ponta e mola utilizada é o governo.
A tese da catástrofe demográfica, usada para justificar os actuais cortes nas pensões, é um completo logro: há dinheiro que chegue agora para pagar as pensões e parece evidente que haverá também no futuro, a não ser que o galope do desemprego continue. Se alguma catástrofe demográfica está à vista, é a que resulta da morte prematura de jovens e idosos a quem está a ser subtraído o acesso à saúde.
O governo anda a brincar com a vida dos portugueses. É a eutanásia, praticada desta vez não em nome duma suposta «pureza» da raça, mas sim em nome duma suposta «pureza» do mercado.
Um cão de fila chamado Medina Carreira
Desde a década de 1990, pelo menos, que Medina Carreira se comporta como um perdigueiro que vai à frente, na senda promovida pelo FMI, tentando provar que as funções sociais do Estado não são sustentáveis, que a segurança social não é sustentável, que as pensões de reforma não são sustentáveis. O despudor deste comentador vitalício das televisões vai actualmente ao ponto de falsificar números e gráficos para «provar» que a segurança social é definitivamente insustentável. Não é o único, evidentemente, mas a admiração que angariou com as suas diatribes contra a corrupção e as oligarquias empresta verosimilhança às suas ficções.
A arrogância despudorada de Medina Carreira já não o impede de declarar diante das câmaras que «podem dizer que não tenho sensibilidade social», dando a entender que a única coisa a fazer seria deixar morrer os idosos e pensionistas. Este antigo ministro de Mário Soares tornou-se um Átila disposto a chacinar reformados, desempregados e pobres.
Poder-se-ia pensar que Medina Carreira nos propõe uma visão catastrófica de futuro tola mas pessoal, e que nada nos obriga a segui-la. Infelizmente não é assim. Tudo o que ele afirma serve hoje de justificação às acções governativas nos últimos anos: o encerramento de centros de saúde, a privatização dos hospitais, o desvio de dinheiros das contribuições sociais para sustentar o negócio privado da saúde e do ensino e para subsidiar empresas privadas, a escassez de medicamentos nos hospitais, o racionamento de consultas (mais ou menos secreto, mas em curso), a tentativa de instaurar os seguros de reforma e acabar com os fundos de pensões, …
Chegados aqui, a única coisa que pode fazer frente a esta forma moderna de eutanásia não é o Tribunal de Haia, mas sim os movimentos sociais – de utentes do serviço nacional de saúde, de reformados, de desempregados, etc.