por Bruno Falcão Cardoso
O tratamento de que são alvo os detidos das prisões portuguesas tem sido colocado em causa pelas famílias dos presos, que contam com o apoio da Associação Contra a Exclusão pelo Desenvolvimento (ACED), do Grupo de Intervenção nas Prisões e da Associação Portuguesa Para a Prevenção da Tortura, numa luta a favor dos direitos humanos mais essenciais, que têm sido, segundo as reivindicações dos protestos, ignorados constantemente pelas autoridades policiais e pela passividade jurídica da lei. Resultado da crescente indignação familiar e do activismo das organizações em questão, o protesto do passado dia 8 de Janeiro mobilizou mais de duas dezenas de pessoas em frente ao Estabelecimento Prisional de Lisboa, denunciando práticas de tortura e casos de espancamento recorrentes, numa sistemática «violação dos direitos humanos», de acordo com o sociólogo Ricardo Loureiro, membro da ACED.
Manifestação contra tortura na prisão de Lisboa, foto de Tiago Petinga, Lusa.
A concentração do dia 8 de Janeiro, pelas 11h, coincidiu com o horário destinado às visitas dos familiares aos reclusos do Estabelecimento Prisional de Lisboa, juntando-se estes aos membros das organizações que estiveram na génese da acção de protesto. Reivindicando quer maior atenção institucional ao problema que aflige as prisões portuguesas, quer maior cobertura mediática e informativa sobre o tema, os movimentos associativos têm vindo a congregar esforços para dar foco a um flagelo que raramente é discutido pela sociedade civil, e que, segundo Ricardo Loureiro, precisa urgentemente de uma resolução, já que as denúncias «são prática comum em grande parte dos estabelecimentos prisionais portugueses».
O sociólogo, que em Agosto passado sofreu na pele ataques da força policial na sequência de desacatos aquando da divulgação do projecto RUAS (Revitalização Urbana Artística do Seixal), descreveu o comportamento excessivamente violento da Polícia de Segurança Pública: «Estava a separar dois miúdos e a impedir que se agredissem, após a entrada da polícia optei por ficar passivo e fui agredido por um agente da polícia. Acabei por ser agredido mais umas vezes, e percebendo que o agressor não parava de me agredir – fiquei no mesmo local, não fugi, não corri, não o agredi, falei com calma, informei, identifiquei-me – solicitei-lhe a identificação, que não me foi dada». Esta conduta violenta pode ser, facilmente, transposta das ruas para dentro das instalações prisionais e servir de exemplo com o qual os reclusos das prisões portuguesas não hão certamente de querer conviver:
«São diversas as denúncias sobre a tensão vivida por presos e familiares de presos no Estabelecimento Prisional de Lisboa. A prática de tortura dentro desta instituição do Estado viola leis nacionais e internacionais de Direitos Humanos. São diversos os casos de espancamento praticados por guardas no Estabelecimento Prisional de Lisboa, são relatados com regularidade bem como outras queixas relativas a condições de celas, comida, cuidados de saúde e tratamento humilhante de familiares», podemos ler no manifesto elaborado pelo movimento social dos Indignados, que apelava à comparência na concentração do dia 8 de Janeiro.
As repetidas acusações de maus-tratos, falta de condições higiénicas nas celas, deficientes cuidados de saúde e falta de comida estão no cerne da luta encetada a favor dos Direitos Humanos, onde se exige a rápida e devida intervenção do Estado português:
«Presos/as, familiares e movimentos sociais solicitam a intervenção urgente sobre o comprometimento do Estado Português com a não-violação dos Direitos Humanos nas prisões em Portugal (inclusive recentemente Portugal ratificou o Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes da ONU, convenção que assinou em 2006).»
As origens do protesto e a permissividade da lei
Os anseios e as queixas dos detidos têm tido eco junto das organizações não-governamentais que em Portugal acompanham e supervisionam situações de desrespeito dos direitos humanos: «Este protesto surge no seguimento de denúncias e queixas de presos e familiares de casos de tortura e espancamentos físicos e psicológicos nas prisões», esclarece Ricardo Loureiro, que classifica este cenário de sistemático, pois «há muitas situações de Norte a Sul do país de violação de direitos». De acordo com o membro da ACED, desde 1996 que a proliferação de casos de espancamento nas prisões tem subido de tom, acompanhada de tratamentos apelidados de «humilhantes» pelos queixosos.
Bruno Barros, presente no protesto, é irmão de um dos reclusos que alega ter sido espancado brutalmente no Estabelecimento Prisional de Lisboa, dois dias antes da concentração ter tido lugar. Tendo sabido do sucedido através do colega de cela do irmão, detido preventivamente há já um ano, Bruno fez saber que este não é o primeiro relato de violência de que o seu familiar é alvo. Como reacção ao ocorrido, Bruno Barros afirmou a vontade de apresentar queixa do Estabelecimento Prisional de Lisboa, mostrando-se visivelmente indignado: «Isto é desumano…», desabafou aos jornalistas, alegando, adicionalmente, que foi impedido de visitar o irmão. O relato prossegue, secundado por denúncias controversas: «Soube que o foram buscar à cela a meio da noite e levaram-no para um calabouço, onde foi brutalizado. Está sem água, sem comida, sem luz do dia. No dia seguinte liguei para aqui, mas não me quiseram dar informações nenhumas», descreve Bruno Barros, garantindo que, devido à banalização da violência nas prisões, «há reclusos que pagam para ter a sua própria protecção dentro da cadeia». Na sua opinião, foi impedido de visitar o irmão por forma a ocultar as mazelas sofridas pela brutalidade policial da madrugada do dia 6 de Janeiro: «O dia da visita foi alterado para não ver o estado físico dele», sustenta, acrescentando que o ambiente no estabelecimento tem sido de tensão generalizada e agressividade exacerbada por parte dos polícias: «Um recluso, simplesmente porque levantou a tampa da panela para ver o que era o almoço, foi espancado à frente de toda a gente».
A reacção da ACED à denúncia de Bruno Barros, identificando o recluso nº 584, que «foi levado por guardas da ala F, onde costuma ter cela, para a zona onde se espancam os presos». No seguimento da denúncia enviada à Provedoria da Justiça, à Inspecção-Geral dos Serviços de Justiça e à Procuradoria-Geral da República, a associação aponta o dedo à realidade punitiva das prisões, para lá da fronteira legal:
«A ACED reclama, como é natural, uma investigação empenhada para verificar o que se passou, sabendo que é voz corrente, desde que a associação se constituiu, a existência desses espaços reservados a punições extrajudiciais toleradas, quiçá administradas pelas autoridades, em particular na Penitenciária de Lisboa.»
António Pedro Dores, professor do departamento de Sociologia do ISCTE e presidente da Associação Contra a Exclusão pelo Desenvolvimento, alerta para a quantidade de casos como o de Nuno Miguel Barros, mencionando também a regularidade dos chamados «castigos»: «O que acontece neste caso é excepcional, pois há alguém da família que fala. Os castigos corporais são regulares e conhecidos dentro do sistema, pois qualquer preso sabe que há sítios nas cadeias para os castigos.»
Há vários anos que as organizações sociais manifestam uma preocupação latente com estes casos. Têm alertado para as irregularidades perpetradas nas prisões nacionais, como comprova o ofício da ACED, datado de 2007, dirigido ao Ministério da Justiça: «As alas de segurança, como temos denunciado insistentemente faz anos, não respeitam a legalidade, ainda que isso não seja assim considerado pelas autoridades responsáveis pela inspecção». Apontam à tutela a responsabilidade na construção de mais celas disciplinares com o intuito de alargar os «castigos», tanto em duração como em intensidade, ainda que sem efeitos práticos benéficos: «Com o pretexto de acabar com a burocracia, passou-se a utilizar os artigos 111 e 115 da lei prisional – que servem apenas para casos excepcionais e de emergência – para castigar reclusos». Da utilização abusiva de ambos os artigos resulta a escusa de formalizar acusação e averiguar culpa, com o efeito perverso de se abrir a possibilidade, ilegal, de manter o preso em regime extrapunitivo por tempo indeterminado: «Ninguém sabe porque começou e como vai acabar um internamento em ala de segurança», conclui o ACED.
Frederico Rodrigues, detido no Estabelecimento Prisional de Paços de Ferreira, encontrava-se, no ano 2007, encarcerado em solitária por um período ininterrupto de 481 dias, quando o limite legal não pode exceder um mês. «Estou há 481 dias em isolamento total, sem ver a minha filha, e não estou bem, não estou a conseguir resistir», afirmou o presidiário, acusado de tentativa de homicídio e violação. Para finalizar a argumentação, a ACED sublinha a arbitrariedade disciplinar nas prisões, afirmando que terá chegado ao seu conhecimento um caso de ameaça de morte contra «quem quis denunciar práticas de tortura nessas alas de segurança».
A brutalidade nas prisões portuguesas
Raffaele Cifrone revela mazelas físicas (fonte: ACED)
O caso de Raffaele Cifrone, detido no Estabelecimento Prisional de Coimbra, engrossa a lista de casos de maus-tratos denunciados às organizações não-governamentais, ao Provedor de Justiça, ao Ministério da Justiça, à Direcção-Geral dos Serviços Prisionais, bem como no Tribunal Penal Internacional e ao Provedor de Justiça Europeu. Em prisão preventiva desde 2008, o italiano queixa-se de múltiplas agressões repetidas no tempo, além de acusar as autoridades de o injectarem com «fármacos desconhecidos» e de o submeterem a uma «endoscopia forçada», como se pode ler num documento do ACED. No artigo consta que, «das muitas vezes que sofreu agressões, é de salientar o episódio ocorrido em 2010, do espancamento realizado pelos elementos da sua escolta do Grupo de Intervenção de Segurança Prisional, que após condução a uma diligência, quando iam no elevador com o recluso algemado, o agrediram com socos e bastões na parte superior do corpo». As acusações de Cifrone particularizam também a acção de altos magistrados como o juiz Carlos Alexandre, a Dra. Eduarda Matos Godinho, e a médica interna Patrícia Henriques Galvão Gonçalves Filipe, esta última por ter autorizado «tratamento compulsivo sem que tivesse apetência para o fazer», delata Cifrone na sua queixa à Procuradoria-Geral da República.
Raffaele Cifroni 3 meses depois de ter sido detido,
à saída do Hospital Prisional de Caxias (fonte: ACED)
Os casos de tortura têm sido uma constante ao longo dos últimos anos, acrescentando-se muitas vezes às alegações de brutalidade a negligência médica, represálias psicológicas e ameaças, punições aleatórias e falta de acompanhamento jurídico-legal, aquando das tentativas de denúncia vindas dos reclusos. Em Março de 2005, Moisés Maduro, recluso que decidiu recorrer ao apoio da ACED no seguimento de maus-tratos no Hospital Prisional de Caxias, afirmou ter sido alvo de torturas durante a recuperação a uma cirurgia de amputação a parte de um pé, «alegadamente consequência da negligência de tratamento médico», sofrendo posteriormente de represálias pelo facto de se ter queixado do sucedido. No mesmo ano, a ACED faz registo, num comunicado dirigido ao Ministro da Justiça, do espancamento de José Ventura Mendes Vaz, que desde aí «ficou com a vista e sistema nervoso afectados», tendo dado entrada no Hospital Prisional de Coimbra e permanecendo «uma semana sem ser tratado». Constatamos, prosseguindo a leitura, que meses depois o recluso permanecia sem assistência médica condigna: «Em 7 de Junho o recluso continua a sofrer dores de cabeça com origem na sua vista por tratar, sem que lhe tenha sido dada nenhuma perspectiva de tratamento».
Marcus Fernandes, que cumpre pena na prisão de Monsanto, também acusa os serviços prisionais de agressões contínuas e injustificadas. A constante e violenta humilhação a que diz ser sujeito durante as revistas – onde tem de se apresentar nu e sofrer um escrutínio abusivo e «amesquinhante», como caracteriza a ACED em comunicado – fez com que Marcus venha, há já algum tempo, recusando-se a sair da cela, dia após dia. Foi sistematicamente impedido de usar o telefone para contactar a família e o pedido feito ao director do estabelecimento, com vista a alterar essa situação, foi ignorado. No documento intitulado «Pedido de acesso a medicamentos em Monsanto», datado de 2011, a ACED reportou a sua preocupação com o isolamento a que o detido foi forçado, apelando às «autoridades competentes» que fizessem as diligências necessárias para que Marcus pudesse receber medicamentos para um tratamento médico:
«Trata-se de lhe fazer chegar medicamentos para tratar dos problemas de saúde com que se debate. Haverá alguma possibilidade de haver quem queira ou possa impedir o preso de começar e terminar o seu tratamento? Se sim, com que legitimidade? Se não, é seguro que nenhuma autoridade estará em condições de fazer o que esta família teme que lhe possa acontecer?», indaga a associação.
Em 2010 o episódio do uso de uma arma de electrochoque num preso causou perplexidade na opinião pública e suscitou, por parte do Grupo de Intervenção nas Prisões, uma reacção acutilante que não poupou críticas ao sucedido na prisão de Paços de Ferreira:
«Entendemos que mesmo aqueles que violam os direitos humanos de outros devem ser respeitados pela sua dignidade humana. É a defesa desse princípio que nos une no Grupo de Intervenção nas Prisões. É ele que nos leva a dizer que o uso de violência por parte de agentes do Estado sobre alguém que não tem capacidade de defesa é inaceitável. A utilização de uma arma taser contra um detido manifestamente perturbado e que não se mostra violento é intolerável.»
O Estado português é também visado, pela inacção e desleixo evidenciados:
«Do Estado de Direito esperar-se-ia ter sido capaz de finalizar atempadamente o inquérito sobre o caso – simples e bem documentado – e tirado conclusões de forma exemplar, em nome da legalidade e do controlo dos ímpetos que fazem dos castigos corporais uma marca de água das forças de segurança portuguesas, conforme denunciado regular e sistematicamente pela Amnistia Internacional.»
Ao finalizar o comunicado, o Grupo de Intervenção nas Prisões relembra a responsabilidade acrescida do Estado em supervisionar estes casos, fazendo notar que as directivas inerentes aos direitos humanos são para respeitar:
«O Estado está obrigado – pelo facto de ter subscrito e ratificado voluntariamente a Convenção contra a Tortura – a comportar-se de forma diligente na prevenção deste tipo de actuações. Manifestamente não é isso que acontece. Há que mudar de comportamento.»
Da arbitrariedade punitiva ao limiar da sobrevivência
Muitos são os reclusos que se queixam de viver uma situação desumana. Além da violência a que são sujeitos, é-lhes negado o respeito pelas necessidades primárias. Na prisão de Beja a fome parece ser uma constante, segundo as queixas dos reclusos. Em carta anónima de Dezembro/2012, publicada no jornal Diário do Alentejo, tal situação é denunciada de modo claro: «Os reclusos da prisão de Beja queixam-se aos seus familiares de fome, além da comida ser de muito má qualidade (carne de frango verde e azulada por dentro) e pouca. Os rapazes entram para lá e ao fim de duas semanas já estão a ficar esqueléticos». Acresce a este problema a falta de condições nas instalações, repetidamente denunciadas e ventiladas pelas associações já referidas.
Cadeia de Beja
A prisão de Monsanto, renovada em 2007, é paradigmática no que toca a este tema, por congregar em si ambos os defeitos: uma arbitrariedade punitiva e falta de condições mínimas para o seu pleno funcionamento. Sobre o último, um ofício da ACED reflectia essa carência, surpreendentemente manifesta logo desde a sua inauguração: «Familiares de detidos em Monsanto pediram que transmitíssemos publicamente a sua perplexidade perante a experiência de se viver nessa prisão, acabada de construir. A primeira perplexidade formularam-na assim: uma prisão nova já não funciona em aspectos básicos?» Um comunicado da associação, redigido em 2012 e dirigido ao Ministério da Justiça e à Inspecção-Geral dos Serviços de Justiça, elenca várias deficiências: «Excesso de tempo presos, 23 horas por dia sem qualquer actividade; uma hora por dia a céu aberto num pátio sem condições; comida intragável», além do racismo e das agressões físicas e verbais. O descontentamento dos detidos ganhou a forma de protesto, através de uma greve de fome, iniciada a 28 de Julho de 2012:
«Nós, reclusos de Monsanto, vimos nos queixar de várias situações que passarei a enunciar: queixas (…) arquivadas pela Inspecção-Geral dos Serviços de Justiça e (…) ignoradas pela DGSP, de quem não obtemos respostas, porque fecham os olhos. Queixas sobre os abusos de poder, discriminação a vários reclusos estrangeiros e de raça negra, torturas psicológicas e agressões a reclusos. Provocações de guardas com intenção de prejudicar constantemente a nossa avaliação e o nosso reingresso no regime comum. Recusas de visitas de familiares e amigos que nos visitavam noutros Estabelecimentos Prisionais. (…) Guardas que vêm trabalhar sob o efeito do álcool e em estado lastimável, que participam por tudo e por nada, que fazem chantagens emocionais».
A esta insatisfação juntam-se as declarações do recluso espanhol Jaime Giménez Arbe, que descreve assim a conduta dos funcionários do Estabelecimento de Monsanto: «Quando querem anular-nos psicologicamente obrigam-nos a despir e chegam, inclusivamente, a tocar-nos nas partes nobres», adjectivando a alta segurança a que está sujeito de «sequestro e incomunicação».
Sobre a arbitrariedade que reina em muitas prisões portuguesas, podemos também, a partir do exemplo de Monsanto, tirar conclusões objectivas. Considerada prisão de alta segurança, Monsanto goza de um aparente regime de indefinição no que a esse conceito concerne: o que é e que propósito serve uma prisão de alta segurança? Esta e outras perguntas são colocadas pela ACED ao Ministério da Justiça:
«Que necessidades é que tal tipo de prisão vem recobrir? Por outro lado, como são seleccionados os presos que para lá vão? Quem merece (e quem julga isso?) um regime de vida mais fechado? Que se ganha com isso? Quem ganha com isso?».
Na verdade, já em 2008 o organismo tinha objectado contra a arbitrariedade na escolha dos presos perigosos, dando voz à revolta dos detidos, que acusavam o director do Estabelecimento Prisional de inventar cadastros disciplinares «como forma de justificar, através das informações internas, a permanência daqueles presos naquela cadeia».
Apelidando Monsanto de «Guantanamo português», a ACED relembra que um dos funcionários da Direcção-Geral dos Serviços Prisionais foi afastado por se ter provado que manipulava «informações no sentido de condicionar as decisões sobre a transferência de reclusos entre as várias cadeias», sendo a conclusão lógica: «Se o senhor Orlando Lopes foi afastado por isso, por que o Director de Monsanto não deve ser afastado também, se faz coisa semelhante?» A pergunta ficou, aparentemente, sem resposta cabal. Provando que o caso do funcionário Orlando Lopes não é um acto isolado mas sim um procedimento ilegal repetido, a acusação de Paulo Romão vem dar volume às acusações que recaem sobre o funcionamento administrativo das prisões em Portugal. O detido de Monsanto acusou, em 2009, o director do Estabelecimento Prisional de Monsanto «de cumplicidade de forjamento de provas e falsificação de documentos desde 2007», de forma a forçar a continuidade deste na prisão de alta segurança. Para além desta afirmação peremptória, outras se seguem, podendo ser lidas no blogue de Paulo Romão. Todas elas colocam em causa a idoneidade e legalidade da administração de Monsanto:
«O recluso possui em seu poder documentos confidenciais com a assinatura do subdirector-geral, João Couto Guimas, que provam o forjamento de provas e falsificação de documentos. Os advogados do recluso, desde Julho de 2007, pedem explicações à Direcção-Geral dos Serviços Prisionais, enviaram mais de 20 faxes mas nunca obtiveram resposta».
Prisão de Monsanto, Lisboa
Uma visão global do sistema penal português
Dados recentes (estatísticas da Direcção-Geral dos Serviços Prisionais) demonstram que o número de reclusos atingiu um novo máximo desde 2004, estando actualmente 13.500 detidos nos Estabelecimentos Prisionais do país. O aumento de 6,4% apenas no último ano traduz bem aquela que vem sendo uma realidade cada vez mais enraizada no sistema penal português: a sobrelotação das prisões. De acordo com as mesmas estatísticas, a taxa de ocupação das cadeias é de 118,8%. Uma das consequências directas desse problema é o agravamento das condições das mesmas. Em Abril de 2012, o Grupo de Intervenção nas Prisões emitiu um comunicado de imprensa onde sublinha a sobrelotação, que está intrinsecamente ligada ao descontentamento dos detidos:
«Vive-se, neste momento, nas cadeias portuguesas uma situação de profundo mal-estar, devido à crescente sobrelotação, que nesta situação de crise acarreta inclusivamente queixas de fome, falta de assistência médica e medicamentosa, dificuldades de entrada de bens levados pelos familiares com vista a minorar essas situações e também conflitos internos em vários estabelecimentos prisionais.»
Noutra comunicação, o grupo expõe, em correlação com a problemática da sobrelotação, outro flagelo que assombra as prisões nacionais: a droga.
«Nos últimos anos o Estado português apurou o limite mínimo de consumidores de drogas ilícitas nas prisões e confirmou as estimativas que circulavam. Estimava-se entre 40% e 80% o número de presos que consumia nas prisões, o que fazia de Portugal dos países europeus onde tais práticas eram mais generalizadas.»
Como pano de fundo destas cruas realidades está a falta de programas de reinserção social e a espiral de isolamento a que estão devotados os reclusos, já que os números demonstram que «quase todos os presos, calcula-se que mais de 80%, enquanto crianças e jovens, passaram por experiências de institucionalização. Cerca de metade dos presos têm ou tiveram o pai preso», como afirma o Grupo de Intervenção nas Prisões.
A reincidência é sintoma de um país pouco activo na intervenção contra a delinquência juvenil, ineficiente na assistência social e desatento às necessidades de uma crescente pobreza, sem perspectivas e sem apoios de um Estado cada vez menos social. Nas palavras da associação, é urgente «compreender de que modos as instituições de segurança social e de reinserção são, afinal, antecâmaras do encarceramento, por inoperância ou por acção de promoção tácita da vida no cárcere». A ACED refere, como exemplo flagrante, o «caso de Carlos Gouveia – a quem foi aplicada a taser no caso já referido –, institucionalizado desde os quatro anos de idade, que com quase 30 nunca saiu das instituições, tendo passado quase directamente do orfanato para a prisão e sido sujeito a um regime que o traz preso a sucessivos processos-crimes, com o possível resultado de uma institucionalização perpétua».
Mas se a realidade do sistema penal português carece de uma intervenção generalizada e reformista, tanto a nível dos direitos humanos como a nível logístico e administrativo, a sua análise sincera e reveladora é, muitas vezes, alvo de um certo encobrimento estatal: «A experiência ensinou-nos que as inspecções aos serviços prisionais estão condicionadas, de forma a impedir a emergência aos olhos do Estado e do público dos casos de violência e maus tratos ocorridos nos estabelecimentos prisionais», expõe a ACED.
Das muitas correcções e profundas alterações que esta decadente realidade necessita urgentemente, várias estão presentes no «Relatório para o Estado Português da visita a Portugal levada a cabo pelo Comité Europeu para a Prevenção Contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes» de 2008; as recomendações incidem sobre uma melhor preparação por parte das autoridades (PSP e GNR), «particularmente em termos de direitos de cidadania», citando a Inspecção-Geral da Administração Interna. A falta de locais para actividades ao ar livre é também digna de menção, assim como o aviso à necessidade de respeitar os direitos dos detidos, o seu acesso a advogado, a um médico e a contactar familiares. Apontando a sobrelotação como um problema a ser rapidamente resolvido, o Comité Europeu aconselha a que sejam «redobrados os esforços para que o staff em Monsanto e em Coimbra, como em todos os restantes Estabelecimentos Prisionais, entenda que os maus tratos são inaceitáveis e nada profissionais, e que resultarão em severas sanções disciplinares e/ou acusação criminais».
Portugal, tendo sido um dos países que ratificou «A Convenção Contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes», de 1984, e o Protocolo Adicional associado à Convenção da ONU, ratificado no fim de 2012, tem a obrigação de supervisionar, zelar e acudir, jurídica e legalmente, às situações de ilegalidade que vão minando o bem-estar dos reclusos, na sua óbvia e inalienável condição de seres humanos com direitos essenciais.
A comunicação social e a verdadeira realidade
Não sendo um quadro muitas vezes contemplado pela sociedade portuguesa em geral, o facto é que continua (mesmo com o desleixo cívico generalizado e a promiscuidade de um Estado pouco preocupado com os direitos básicos dos reclusos) a ser um quadro negro, que necessita de uma reforma estrutural. E se tal urgência é flagrante em termos governamentais, não o é menos em termos jornalísticos. Porque é obrigação profissional e deontológica do jornalismo indagar, pesquisar, reportar e dar a conhecer os factos de forma imparcial. Porque é através dessa premissa do trabalho jornalístico que se sedimenta a cultura cívica e se generaliza a democratização da informação, pilar fulcral da vida em sociedade num Estado de direito. Ora, em muitos casos, o dever de informar é tolhido por outras contingências que não a imparcialidade e rectidão que se exige ao exercício da função – é assim que a ACED retrata o modo como a comunicação social se comporta em relação a este tema.
Segundo a associação, o desleixo do Estado no que toca ao sistema prisional e às ilegalidades que dentro dele proliferam é acompanhado pela mesma quantia de desleixo apresentado pela comunicação social portuguesa: «O que acontece é que estes casos são na verdade banalizados tanto pelo estado, como pela sociedade e também pelos jornalistas. Quer dizer: raramente acontece haver testemunhas credíveis. Quando se fala da existência de torturas pedem-nos “provas”. Quando há provas, afinal a existência de tortura – que sem provas se admite estar extinta – não parece nada de relevante. Não é por acaso que o estado de direito está no estado em que se encontra!», afirma a ACED num ofício dirigido à jornalista Rosa Ramos e ao conselho de redacção do jornal i intitulado «Protesto contra a manipulação da informação». A comunicação (da qual Rosa Ramos, que assina a notícia de 9 de Janeiro de 2013 intitulada «Prisões atingem recorde de reclusos em oito anos» é destinatária) é bem directa na sua crítica: «Escolhemos dirigirmo-nos a vós, directamente, para podermos ser mais concisos e precisos. Por esta peça ser a mais completa que encontrámos. Descreve bem a estratégia comunicacional das autoridades e a cumplicidade objectiva da jornalista e da redacção».
Se o jornal i está no foco das críticas, a Lusa também não escapou ao duro reparo da associação, onde inclusivamente foi pedido ao «Senhor Provedor de Justiça que analisasse o trabalho da Lusa neste caso. Parece-nos ser indigno de um serviço público deixar-se manipular e ser agente manipulador em favor de interesses instalados no Estado que entendem ser a tortura algo que devem esconder em vez de evitar e combater». Desinformação, transformação de factos em mentiras e «de mentiras em antifactos» – esta é a descrição do fraco jornalismo, esclarece a ACED; alterações do foco noticioso com intuito de desviar atenções do essencial (como acontece no caso da notícia do jornal i, na opinião da ACED) estão «longe de ser caso singular», escondendo, ou por omissão ou por descentramento do critério noticioso, uma realidade que vai sendo ocultada e que merece, pelo inefável e intocável respeito pelos direitos humanos, ser denunciada com extensão, coragem e frontalidade, doa a quem doer.
Os casos ilegais dentro da totalidade do sistema penal português são uma realidade que não pode ser obnubilada pela comunicação social nem ignorada por um Estado democrático de direito que pretenda respeitar os direitos humanos. As sucessivas queixas de atropelos a esses direitos são um compêndio negro da actuação de um sistema penal cego, surdo e mudo no que toca aos reparos e denúncias, tanto dos reclusos, como de familiares e das associações envolvidas. A luta de grupos com a ACED, o Grupo de Intervenção nas Prisões ou a Associação Para a Prevenção da Tortura tem dado voz aos reclusos, numa tentativa de diminuir a exclusão a que estes têm sido votados, fazendo eco das brutalidades ocorridas sob tutela estatal e juntando-se aos protestos legítimos de quem vê o familiar ou amigo espancado – o caso de Nuno Miguel Lopes Barros, que a família pôde comprovar, através dos hematomas espalhados pelo seu corpo, é sintomático da realidade vivida – e dificilmente encontra solução, sequer atenção, para a sua indignação e descontentamento.
Um país e o seu colectivo social medem-se também, no que concerne à preservação e estima dos direitos humanos, pela forma como trata aqueles que erraram e que foram considerados criminosos (sendo que muitos deles ou não o são, por erro judicial, ou estão em prisão preventiva, portanto em situação indefinida) e inaptos, temporariamente, a partilhar a vida em sociedade. Um país e um colectivo social não devem esquecer que todos somos humanos e que não existem níveis de humanidade: somos todos dignos dos mínimos e inalienáveis direitos básicos, que nos assistem, quer sejamos livres ou condenados. Agredir arbitrariamente alguém, negar-lhe comida condigna e ajuda médica apropriada, fazer comentários xenófobos e revistas humilhantes, não são comportamentos dignos de quem vive de acordo com os padrões que se exigem a uma sociedade democrática que deve respeitar a integridade física, psicológica e social de cada um. Quem o faz deve, portanto, ser julgado também por tais actos criminosos. A um condenado é-lhe sentenciada uma pena: a privação da liberdade, e não uma dupla pena que a essa primeira ainda se acrescenta – a brutalidade sofrida na pele, a negação do bem-estar mínimo e da integridade enquanto ser humano.