O mundo contra a Monsanto
por Bruno Falcão Cardoso
Marcha Contra Monsanto em Lisboa (foto: cortesia de Rise Up Portugal)
O dia 25 de Maio de 2013 viu o mundo dar um cartão vermelho total à gigante multinacional Monsanto. O protesto, espalhado por dezenas de países e centenas de cidades à volta do globo, é um marco na luta internacional contra a privatização da Natureza e a favor da preservação da biodiversidade. Marchando, em rota de colisão com o poder corporativo, os cidadãos mostraram a sua indignação perante a monopolização do mercado das sementes e o perigo latente e ainda misterioso dos alimentos geneticamente modificados. A falta de supervisão científica, a notória promiscuidade entre governos e empresas do ramo da biotecnologia e a gritante falta de informação quanto aos malefícios dos produtos transgénicos foram razões mais que suficientes para o povo, um pouco por todo o planeta, se agregar em torno daquilo que é de todos por direito: a liberdade do processo alimentar e a integridade biológica das culturas agrícolas. O movimento «March Against Monsanto» visou consciencializar as populações para o perigo global em que vai sendo transformada a comida, autêntica refeição de destruição maciça, nas mãos de empresas que apenas perseguem o lucro de modo cego e avassalador.
Manifestantes seguram cartazes durante um comício contra a Monsanto e os organismos geneticamente modificados, em Valparaíso, Chile (Reuters: Eliseo Fernandez)
Monsanto: um passado sombrio
A empresa multinacional Monsanto tornou-se a mais poderosa potência no emergente sector da agrobiotecnologia, dominando de modo avassalador o mercado dos produtos geneticamente modificados e liderando, concomitantemente, os experimentalismos científicos que têm permitido o desenvolvimento imparável de uma nova cultura de negócio: a alteração genética de sementes e sua consequente patenteação. Fundada em 1901, no Missouri, a empresa iniciou-se na indústria química, actividade que marcaria o seu progresso durante décadas: da sacarina à aspirina, passando pelo bifenilpoliclorado e pelo DDT (Dicloro-Difenil-Tricloroetano), a Monsanto foi consolidando a sua posição de charneira no avanço da indústria química da primeira metade do século XX. Numa época focada no progresso experimental da agroquímica e da farmacologia, a par do próspero aumento da utilização de aditivos alimentares, a Monsanto, actuando em múltiplas áreas, constituiu-se como extensão empresarial do vanguardismo científico de então, quase sempre encriptado e não menos vezes laxativamente supervisionado pelas entidades reguladoras do Estado. Não é, portanto, surpreendente que a empresa norte-americana tenha provocado uma suspeita constante que o tempo se encarregou de confirmar.
Num artigo do Wahsington Post de 2002 – actualmente já apagado – podia ler-se o seguinte título: «Monsanto escondeu décadas de poluição». O artigo, concernente ao uso de bifenilpoliclorado (PCB em acrónimo inglês) na localidade de Anniston, no estado de Alabama, fez eco do uso generalizado de PCB na região, usado predominantemente no isolamento de equipamentos eléctricos devido à sua resistência a altas temperaturas: o descarte destes elementos é um processo altamente perigoso e prejudicial ao meio ambiente, devido às suas características não-biodegradáveis. A Monsanto teve permissão do Governo para se desembaraçar do conteúdo tóxico, mas as autoridades locais, bem como a população de Anniston, nunca souberam do sucedido. As consequências para a saúde da população foram trágicas: desde a década de 60 que a região é assolada por doenças graves como hepatite, diabetes e cancro. Ken Cook, presidente da associação Environmental Working Group, fez um retrato cru da situação: «Os habitantes de Anniston não foram informados sobre o envenenamento a que estavam sujeitos», afirma o activista. «Eles sabiam da verdade desde o começo, esconderam a verdade aos seus vizinhos, às autoridades públicas, e quando partilhavam informação com essas instâncias, as autoridades, em vez de apoiarem as pessoas, que estavam a ser envenenadas, decidiram apoiar a empresa. Eles apoiaram a Monsanto. Foi ultrajante, completamente imperdoável.» De facto, documentos secretos da empresa, tornados públicos pela decisão dos tribunais na sequência de um processo judicial, revelam a fria verdade e deixam claros os resultados letais da actividade da empresa: relatórios de 1937 advogavam já as consequências malignas do uso de PCB’s, como «efeitos tóxicos sistémicos», «erupções cutâneas» ou «sintomas de hepatite», este último relatado num documento datado de 1961. Experiências conduzidas com peixes, colocados no rio de Snow Creek por cientistas, comprovaram o pior dos cenários – «todos morreram em três minutos e meio», pode-se ler nas anotações de um ficheiro classificado como «F.Y.I and Destroy», de 1966. Apesar do conhecimento sobre a inevitabilidade do impacto devastador na saúde, a Monsanto continuou a sua actividade, já que, como declarava num dos seus documentos internos de 1970, «Não nos podemos dar ao luxo de perder um dólar de negócio que seja». Avaliando estes dados, Ken Cook é peremptório no julgamento da Monsanto: «Nós nunca confiaríamos numa empresa como a Monsanto no que toca a dizer a verdade sobre um problema de poluição ou um problema com determinado produto seu.»
Mas o indiscriminado e displicente uso de bifenilpoliclorado não completa a mancha que assombra o passado da empresa. O uso de um composto químico na Guerra do Vietname, chamado «Agent Orange», pode também ser assacado à responsabilidade da Monsanto, que o comercializou ao departamento militar do Estado norte-americano. O potente herbicida, usado entre 1962 e 1971 pelas tropas dos Estados Unidos para destruir plantações vietnamitas e vegetação próxima de zonas consideradas estratégicas, foi a causa directa de inúmeras doenças e mortes, tanto entre a população vietnamita como entre o corpo militar norte-americano. Apesar dos estudos comprovarem a perigosidade cancerígena das dioxinas presentes no composto «Agent Orange», o Estado norte-americano alegou continuamente que necessitava de mais pesquisa científica para julgar os detractores. Estavam em causa empresas como a Dow, Diamond Shamrock, Hercules, Northwest Industries e claro, Monsanto. Os processos de antigos militares sucederam-se, os casos arrastaram-se em tribunal, muitos deles até aos dias de hoje, tendo os juízes rejeitado repetidamente as noções de «guerra química» por parte dos queixosos vietnamitas. No balanço final da guerra, cerca de 80 milhões de litros de «Agent Orange» foram pulverizados nos campos e florestas do Vietname, estimando as autoridades do país que cerca de 400 mil pessoas tenham perecido ou sido gravemente afectadas pela TCDD (poluente organoclorado resultante da composição do herbicida) e que 500 mil tenham nascido com deficiências, enquanto o número de cancros e outras maleitas genéticas se cifrou nos dois milhões.
Ligada infamemente a várias controvérsias onde as provas cabais contra si abundam, a Monsanto aprendeu, com a complacência institucional dos governos, a mascarar as suas acções ao longo dos tempos: «Apesar de várias encarnações de marketing ao longo dos anos, Monsanto é uma empresa de químicos que começou por vender sacarina para a Coca-Cola, depois Agent Orange para o exército, e mais recentemente, sementes geneticamente manipuladas para conterem e suportarem quantidades maciças de pesticidas e herbicidas da própria Monsanto», elucida Ronnie Cummins, director executivo da Organic Consumers Association. Mas como se despoletou o processo ascendente – e tremendamente lucrativo – dos produtos geneticamente alterados?
Tudo se inicia com outro produto químico, propriedade da Monsanto. O «Round Up» entrou no mercado na década de 70, tendo como funcionalidade pulverizar as colheitas e aniquilar ervas perenes. O herbicida (composto na sua maioria por glifosato) foi um sucesso mundial e as suas vendas dispararam de modo consistente, mantendo-se líder no mercado dos herbicidas na actualidade. Apesar de granjear um êxito retumbante, o «Round Up» está longe de ser um produto consensual entre a comunidade científica. Segundo Robert Bellé, professor doutor membro do Centre National de la Recherche Scientifique, provoca uma «disfunção na divisão das células», concluindo que, «do ponto de vista científico, podemos hoje afirmar que esse produto é cancerígeno porque engendra uma disfuncionalidade de supervisão do ADN».
A verdade é que, quer em 1996 nos EUA quer em 2007 em França, a Monsanto foi condenada judicialmente por publicidade enganosa – o tribunal francês decidiu que a palavra «biodegradável» e as expressões «deixa o solo limpo» e «respeita o ambiente» eram falsas e não poderiam constar no rótulo do produto. Apesar dessas confirmações corroborarem a alta toxicidade do herbicida, nem deliberações de juízes nem estudos científicos reveladores do risco cancerígeno travaram a marcha triunfante do baluarte da Monsanto, o «Round Up». «Ficou imediatamente clara a importância dessas descobertas para os utilizadores do produto. Especialmente porque as doses de teste eram bem mais baixas que aquelas que as pessoas normalmente usam. Dissemos a nós mesmos: Meu Deus, temos de alertar o público para este perigo o mais depressa possível», afirmou Robert Bellé em 2002. Mal sabia, à data, que os seus achados seriam amordaçados devido à intocável indústria dos organismos geneticamente modificados, que liderava o avanço biotecnológico e alastrava por todo o mundo a partir do mercado americano: «A toxicidade do Round Up foi ocultada para proteger o desenvolvimento de organismos geneticamente modificados», infere a jornalista Marie-Monique Robin.
Manifestantes marchando pelas ruas de Munique, Alemanha, exigindo a proibição dos OGM (foto Christian Chapman)
A ciência subjugada ao lucro
Se à partida sabemos que o lucro conduz de modo cego grande parte das corporações, passando por cima da ética negocial assim como da lealdade devida aos consumidores, o caso da Monsanto vem reforçar esse facto. Cavalgando a onda progressiva da biotecnologia e das suas descobertas laboratoriais, a Monsanto soube moldar a ciência para seu ganho exclusivo, apropriando-se dos seus métodos e controlando – ocultando – a informação sobre a segurança e viabilidade futura das experiências.
A partir do descobrimento de uma bactéria no solo imune à acção do Round Up, os cientistas avançaram para um processo de alteração do ADN das sementes, pegando na sua estrutura genética e quebrando-a para a recombinar com o gene resistente ao herbicida, usando a biolística, um método científico de transferência directa de genes, com recurso a microesferas de ouro munidas do material genético desejado. Desta forma, aplicando o gene na cadeia molecular da semente que se quer cultivar, obtém-se uma nova semente – transgénica, carregando, na sua informação genética, a imunidade ao veneno do herbicida. Monsanto viu nesse contexto uma oportunidade de negócio inovadora. Depois do Round Up, seguir-se-iam as sementes Round Up Ready. As sementes Round Up Ready têm como trunfo a resistência ao veneno que mata as outras culturas à sua volta aquando da pulverização por parte dos agricultores.
Em 1996 a primeira plantação geneticamente modificada é aprovada nos EUA: soja transgénica destinada à comercialização. Impunha o bom senso, a salvaguarda da saúde, a integridade pública e a ética científica que um produto totalmente inovador, transformado a nível genético – munido no seu ADN com genes que suportam compostos altamente tóxicos – fosse exaustiva e escrupulosamente testado, a fim de comprovar a sua segurança alimentar. Mas nada disso aconteceu: o lucro parece ter falado mais alto, observação que vem sendo confirmada, amiúde, pela comunidade científica: «Quando se quer colocar um novo agente colorante na comida, um microscópico agente colorante, um preservante ou outro pequeno agente químico, isso é considerado um aditivo alimentar, e tem de passar por imensos testes para demonstrar que satisfaz um certo critério de benignidade. Mas quando se manipula geneticamente um alimento, que pode causar alterações nunca antes vistas na planta… eles não exigem nada!» – afirma, incrédulo, Michael Hansen, cientista na Consumers Union, uma organização sem fins lucrativos que tem como lema «testar produtos, informar o público e proteger os consumidores». A gritante diferença de critério apontada por Michael Hansen é um ponto crucial que reflecte a conivência orquestrada que pautou a década de 90, entre o lobby corporativo da poderosa Monsanto e o poder legislativo e supervisor dos órgãos de soberania norte-americanos.
Jeffrey Smith, activista defensor dos direitos do consumidor e autor de três livros sobre organismos geneticamente modificados (OGM) desvenda parte da promiscuidade entre poder político e poder económico: «A razão pela qual os OGM existem parte da mentira que ocorreu na FDA. Eles disseram que estes alimentos não são diferentes, usaram a expressão “substancialmente equivalentes”. Normalmente, para um produto ser considerado GRAS (generally recognized as safe) tem de passar por inúmeros estudos e um consenso avassalador entre a comunidade científica. Com as culturas de OGM nenhum desses requisitos existiu», clarificou Smith, colocando a Food and Drug Administration (FDA), órgão estatal ligado ao Departamento de Saúde, em xeque. Mas Steve Druker, advogado representante da Coalition For Non-Profit Associations, foi mais longe: ao processar a FDA forçou a revelação de múltiplos relatórios internos que desvendaram a opinião consensual dos cientistas do órgão estatal: OGM e alimentos produzidos do modo tradicional não são substancialmente equivalentes. «Recebemos cerca de 44 mil páginas provenientes de ficheiros da FDA, que revelaram que tem andado a mentir ao mundo desde 1992, senão antes. Mas continua a mentir. Afirma que há um esmagador consenso entre a comunidade científica, de que os OGM são seguros. Afirmam que existem dados suficientes para sustentar esse consenso. Ambas as afirmações são mentiras flagrantes», afirmou Druker, sustentando a tese nos pareceres dos microbiologistas da FDA, como o Dr. Louis Prybil, que indicou, como se pode consultar nos ficheiros disponibilizados ao público, haver «uma profunda diferença entre os tipos de efeitos imprevistos da agricultura tradicional e os da engenharia genética», concluindo que vários aspectos desta última poderiam «ser mais perigosos».
Às declarações de Prybil juntam-se as considerações taxativas de Linda Kahl, doutora e membro da FDA, vincando as diferenças entre os dois métodos, bem como as diferenças relativamente aos riscos, com ênfase naqueles que a alteração genética poderia acarretar. As provas contundentes expuseram a acção promíscua da FDA, que, contra o consenso dos seus técnicos, tudo fez para impulsionar e suportar o processo de aprovação dos OGM e sua consequente introdução no mercado alimentar. Hoje em dia, cerca de 90 % das sementes de soja modificadas existentes no mercado mundial são propriedade da Monsanto, num segmento comercial cada vez mais consolidado e abrangente, onde a soja, o milho, o algodão, a canola e a beterraba figuram como produtos-chave na diáspora estratégica da empresa – sem que tenham existido testes conclusivos e credíveis sobre a sua integridade e as suas possíveis consequências na saúde dos consumidores: «Como cientista a trabalhar no terreno, acho muito injusto usar os nossos cidadãos como cobaias de laboratório», afirmou o conceituado cientista bioquímico Arpad Puzstai, membro do Rowett Research Institute, em 1998, fazendo dessa forma explícita o retrato da realidade: nos EUA, cerca de 70 % da totalidade dos alimentos comercializados são de origem genética alterada.
Neste quadro de risco hipotético, a imprevisibilidade dos efeitos nocivos dos OGM é uma «roleta russa genética», como descreve Jeffrey Smith; quanto mais estudos independentes vêem a luz do dia, menos as conclusões são abonatórias no que toca à segurança do consumidor – tanto o estudo de Arpad sobre batatas geneticamente modificadas, como um estudo francês publicado na revista Environmental Contamination and Toxicology sobre milho da mesma origem, ambos utilizando ratos, apresentam resultados negativos: sistema imunitário afectado, problemas nos rins, fígado, abdómen e sintomas de envenenamento. Em 2012, um estudo liderado por Gilles-Eric Séralini, na Universidade de Caen, em França, denunciou um conjunto de problemas de saúde verificados em ratos alimentados com milho transgénico: desregulação hormonal, tumores de maiores dimensões em menor tempo de vida e subsequentemente menor longevidade.
Estudos adicionais têm focado as críticas no uso de antibióticos e na integração de uma bactéria (Bacillus thuringiensis, chamada vulgarmente «Bt») no ADN das sementes (com maior predominância no milho e no algodão) que actua como pesticida, exterminando vários tipos de insectos – apesar de a Monsanto e a Environmental Protection Agency (EPA) afirmarem que a bactéria é destruída pelo organismo humano aquando da digestão, a verdade é que médicos do Sherbrooke University Hospital, no Quebec, descobriram, no sangue de mulheres grávidas e não-grávidas, uma toxina directamente relacionada com o pesticida usado em produtos transgénicos, evidência que contraria a tese preconizada pela Monsanto e pelo órgão estatal de protecção do ambiente. Além de anularem o argumento da empresa, os médicos canadianos descobriram que, nos casos de gravidez, a toxina passa da corrente sanguínea da progenitora para a placenta, afectando directamente o feto, podendo resultar num acréscimo de rinites alérgicas, osteoporoses, escleroses múltiplas, cancros, artrites reumatóides e irritações intestinais.
Situação global do milho geneticamente modificado em 2011
Transgénicos: pura decisão política
A decisão liberalizar a produção e venda de OGM resultou de uma estratégia baseada na ligação íntima entre o governo e o poder empresarial do sector biotecnológico, que trabalharam em conjunto para deliberar, aprovar e ratificar o enquadramento jurídico e legal necessário à comercialização dos novos produtos geneticamente alterados. Descurando as análises técnicas e as opiniões científicas, o Governo norte-americano avançou, numa decisão puramente política, em prejuízo da saúde e do meio ambiente: «O que eu percebi nos anos em que estive envolvido na regulamentação biotecnológica, é que existia um sentimento generalizado no ramo agrícola e dentro do governo de que, se não marchássemos a favor da rápida aprovação de produtos biotecnológicos, éramos anticiência, antiprogresso», recorda Dan Glickman, secretário da Agricultura de Clinton entre 1995 e 2000, desvendado que «havia muita gente no ramo agro-industrial que não queria tantas análises quanto as que deveríamos ter feito», confessa Glickman, admitindo ter sofrido fortes pressões para cooperar com o processo de aprovação sumária de OGM.
Jeremy Rifkin, presidente da Foundation for Economic Trends, concretizou a confissão de Glickman: «Eles sabiam que era tudo uma farsa. A questão da “equivalência substancial” foi um modo de passar por cima da papelada, para introduzir rapidamente os seus produtos no meio ambiente com o mínimo de interferência governamental possível.» Ambas as declarações reflectem o contexto político vigente no início da década de 90: gradual desregulamentação, tanto de medidas de supervisão como de segurança, e um compadrio entre corporações e órgãos governamentais – o próprio James Maryanski, coordenador do departamento de biotecnologia da FDA entre 1986 e 200, admite que a regulamentação de OGM foi estritamente uma decisão política, não orientada em termos científicos. Os testes científicos foram considerados um obstáculo ao lucro da indústria biotecnológica, como atestam as declarações, em 1992, do então vice-presidente de George H. W. Bush, Dan Quayle: «Só em 1991, [a biotecnologia] era uma indústria de 4 biliões de dólares. Deverá chegar, pelo menos, aos 50 biliões no ano 2000, desde que resistamos à disseminação de regulamentação desnecessária.»
A Monsanto encabeçava a lista de corporações interessadas na ausência de análises e de debate sobre os OGM, a fim de acelerar a sua introdução no mercado. O termo revolving doors foi a metáfora ideal para caracterizar a promiscuidade entre o poder económico e o político – tal como uma porta giratória que se mantém a circular com entradas e saídas, assim foram as transições de membros de órgãos públicos para a Monsanto e vice-versa. Desde Mickey Kantor – secretário do Comércio que ingressou no quadro de directores da Monsanto em 1997 – a Clarence Thomas – nomeado juiz do Supremo Tribunal em 1991, trabalhara para a Monsanto como advogado desde a década de 70 –, passando por Linda Fisher – transitou da EPA, onde lidava com a pasta de Prevenção da Poluição, Pesticidas e Substâncias Tóxicas, para um cargo na Monsanto –, muitas foram as trocas que propiciaram um íntimo conluio entre a Monsanto e o poder político, montando o palco favorável à aceitação dos OGM e ao reforço da posição de liderança da empresa, que sustentava o seu negócio na produção e transacção, tanto do herbicida Round Up, como das sementes Round Up Ready, cuja utilização se generalizou no país.
Mercola.com - «Revolving doors» entre Monsanto e poder público
Michael Taylor foi o expoente máximo do termo revolving doors: depois de vários anos a trabalhar juridicamente com clientes como a Monsanto, Taylor saiu da firma de advocacia King & Spalding para integrar a FDA com o cargo de delegado-comissário em 1991, ano que marcou a viragem rumo ao consenso apologético dos OGM. Em 1994 Taylor mudou-se para o United States Department of Agriculture, onde ocupou o cargo de administrador da Segurança Alimentar e dos Serviços de Inspecção, tendo dois anos mais tarde saído para tomar assento na própria Monsanto como vice-presidente do departamento de política pública. Ao longo deste sinuoso percurso Taylor ficou ligado não só à negligente aprovação de OGM mas também ao auxílio na aceitação da somatotropina bovina, uma hormona transgénica de crescimento bovino que tem como função alterar o funcionamento do metabolismo, aumentando a produção de leite: «Michael R. Taylor (…) redigiu as instruções de rotulagem da FDA relativas à rBGH (acrónimo inglês de «recombinant Bovine Growth Hormone»). As instruções, anunciadas em Fevereiro de 1994 proibiram as corporações de lacticínios de fazer alguma distinção entre produtos produzidos com e sem a rBGH», escreve Jennifer Ferrara no polémico artigo «Revolving doors: Monsanto and the Regulators», publicado na revista The Ecologist em 1998, expondo a intenção da FDA de encobrir a «estigmatização» a que os produtos com a hormona transgénica poderiam estar sujeitos por parte dos consumidores – releve-se o facto da somatotropina bovina ser controversa e negativamente avaliada pela comunidade científica. Samuel Epstein, médico e professor emérito na Universidade de Illinois em Chicago, enumera os riscos da hormona: «Este [leite] contém níveis muito elevados de um factor de crescimento natural chamado IGF-1. Quando bebido, o IGF-1 sobrevive à digestão e é prontamente absorvido pelo sangue. Níveis elevados de IGF-1 têm mostrado aumentar o risco de cancro da mama e existem vinte publicações que demonstram isso; risco de cancro do cólon, em cerca de dez publicações; cancro da próstata noutras dez. E outra preocupação: níveis elevados de IGF-1 bloqueiam mecanismos naturais de defesa contra cancros precoces, conhecidos como “apoptose”.»
Activistas anti-OGM reunidos na praça Trocadero, perto da Torre Eiffel, durante a manifestação contra os OGM e a gigante Monsanto, no dia 25 de Maio em Paris (AFP: Fred Dufour)
A Natureza como propriedade intelectual
A outra face da estratégica de crescimento e expansão económica da Monsanto passa pela patenteação das suas sementes transgénicas, munidas dos herbicidas e pesticidas introduzidos no ADN da cultura reproduzida. O que aparenta ser uma hipótese surreal é já uma realidade completamente adquirida: a empresa tem patenteado com sucesso as suas sementes, apoiando-se no argumento que classifica as sementes como propriedade intelectual da empresa. Assim, a soja ou a beterraba, ou o milho, por exemplo, elementos naturais que são património intrínseco do planeta, podem ser adulterados e geneticamente transformados – com venenos, sejam eles mais suaves ou mais potentes – para depois serem patenteados, passando a configurarem propriedade de uma empresa só: a Monsanto.
Andrew Kimbrell, director executivo do Center for Food Safety, uma organização sem fins lucrativos que visa defender a saúde pública e o meio ambiente, esclarece concisamente a estratégia de dominação da Monsanto: «Patentear é controlar. E a Monsanto quer controlar», afirmou sem rodeios; «as corporações estão a alterar a natureza da própria Natureza através da engenharia genética […] o que eles dizem é “não vamos alterar a nossa tecnologia ou sistema económico de modo a adaptarem-se à Natureza, alteremos sim a Natureza, para que ela se adapte à nossa tecnologia e sistema económico”», argumentou Kimbrell numa conferência em 2007 intitulada «Taming the Giant Corporation».
Este raciocínio visa descrever o totalitarismo escudado no suposto progresso tecnológico, premissa maior que subjuga tudo à sua volta: «Eles [Monsanto] são a companhia n.º 1 do mundo. E conseguem fazer isso através de patentes e monopólios governamentais, para que eles e só eles tirem proveito dessas sementes. A herança comum do mundo é agora propriedade de uma empresa», remata Kimbrell, forte crítico do recurso às patentes sobre elementos naturais e consequente controle da produção e comercialização dos alimentos: «É um grandessíssimo plano de negócio que inclui controlo dos alimentos, desde a semente, ao cultivo, até ao garfo», afirma Jane Akre, repórter norte-americana.
Desde a poluição acrescida que o uso de Round Up acarreta sobre o ambiente, passando pela interferência leviana na cultura genética natural dos agentes naturais, com repercussões perigosas e incontroláveis, até ao controlo e restrição – através das patentes – das variedades de sementes, a Natureza tem sido repetidamente confrontada com o ímpeto lucrativo da Monsanto. O discurso de Vandana Shiva, activista ambiental formada em Física, expõe esse comportamento: «Eles [Monsanto] não estão a deixar nada intacto. A mostarda, o quiabo, a beringela, o arroz, a couve-flor…Quando se estabelecer a norma que permita que as sementes possam ser sua propriedade, e os direitos de autor possam ser colectados, dependeremos deles por cada semente que cultivarmos em cada colheita. Se eles controlarem as sementes, controlam a comida. É estratégico. É mais poderoso que bombas ou armas. É a melhor maneira de controlar a população mundial», diz Shiva.
O prognóstico de Shiva e Kimbrell tem sido confirmado repetidamente pelos processos em tribunal que a Monsanto tem levado a cabo contra vários agricultores, numa cifra que já ultrapassou a centena. Acusando-os de violarem a sua propriedade intelectual, a Monsanto tem feito uma caça aos agricultores, levando muitos à falência e forçando a maioria a comprarem e a adoptarem as sementes Round Up Ready. Nesta estratégia de protecção do investimento, a empresa força os agricultores a assinar contratos onde estes se comprometem a não reutilizar as sementes, ficando obrigados a comprarem-nas à Monsanto cada vez que terminam uma colheita.
Troy Roush, agricultor do Indiana, foi um dos muitos alvos da empresa: «Um senhor veio à nossa propriedade e disse ser um investigador privado contratado pela Monsanto. Ele estava a investigar agricultores que guardavam as suas sementes. Perguntou-nos se guardámos as sementes (…) a Monsanto abriu um processo contra nós e apresentaram documentos que afirmaram ser amostras retiradas dos nossos campos. Para obter essas amostras tiveram de trespassar as nossas terras sem permissão», conta Troy, descrevendo o clima de intimidação que reina entre os agricultores, que afirmam ser perseguidos pela «polícia dos genes», um séquito de inspectores privados que investiga a utilização de sementes e zela pela salvaguarda do lucro da empresa. Vandana Shiva encara estes tipos de procedimento como um entrave jurídico e legal da biodiversidade: «O sistema de sementes baseado na monocultura é errado e inapropriado. A biodiversidade significa que as sementes devem estar nas mãos dos agricultores.»
Um manifestante ergue um cartaz contra Monsanto que diz «a nossa saúde é mais importante que os lucro deles», em Bruxelas, Bélgica (foto Kevin Van den Panhuyzen)
Seriedade e protesto: uma questão global
Apesar de terem inundado o mercado norte-americano e de se terem expandido para o continente africano, Austrália e Ásia e várias partes da Europa, os produtos geneticamente modificados permanecem não-identificados, ou seja, a sua rotulagem em nada difere da dos produtos elaborados de modo convencional, o que gerou, desde início, uma desconfiança legítima e uma onda de indignação significativa por parte dos consumidores norte-americanos: se os OGM são seguros, porque não etiquetá-los explicitamente? A pergunta subsiste à medida que os protestos avançam e as promessas recuam – Obama prometera, em 2007, rotular os produtos geneticamente modificados caso fosse eleito. Seis anos depois, nada se alterou nesse aspecto. «Oitenta por cento dos alimentos de um supermercado são produzidos com ingredientes geneticamente modificados, mas essa informação não consta [nas embalagens]», reclama Megan Westgate, líder do projecto Non-GMO, que foi parte central, em 2011, na convocação de marchas em Nova Iorque e Washington, com o intuito de sensibilizar a opinião pública e de protestar contra a falta de informação nas embalagens dos OGM comercializados: «Queremos apenas um rótulo!» foi o grito dominante dos manifestantes. As marchas intituladas «Right2Know» (direito a saber) juntaram milhares de pessoas e consolidaram a revolta de um povo que começou consciencializar-se para o risco que os OGM representam.
Em Março de 2012, o movimento Occupy Monsanto marchou pelas ruas de Washington protestando contra o Congresso norte-americano e a sua promíscua e branda actuação quanto à decisão de rotular os OGM: «Nós temos o direito de saber o que estamos a comer […] os dólares lobistas da Monsanto “chovem” em cima dos políticos, logo é claro que temos um Congresso contaminado pelos OGM, que ameaça a nossa saúde e a saúde do planeta», destacou Ariel Vegosen, activista do movimento. Muitos dos revoltados são agricultores, indignados com a perseguição imposta pela empresa e com o crescente monopólio a que estão sujeitos, onde nem os seus próprios campos de cultivo escapam à incerta roleta genética da Monsanto: «Isto não é ficção científica, está mesmo a acontecer… estamos a criar “super-ervas daninhas”», alerta Gary Hirshberg, defensor da agricultura orgânica e director da Just Label It, referindo-se à resistência que as ervas ganharam, ao longo destes anos, aos herbicidas. À medida que cresce esta resistência, maiores quantidades de herbicida são necessárias para aniquilar culturas indesejadas, poluindo ainda mais o solo, a água e os próprios alimentos cultivados.
Enquanto na Europa se vive um limbo ponderado mas pouco assertivo em relação ao enquadramento dos OGM, a onda de revolta contra a sua proliferação silenciosa tem-se estendido de forma global, numa reacção que ganhou proporções internacionais. No velho continente, as suspeitas sobre a European Food Safety Authority (EFSA) e a sua parcialidade têm vindo a subir de tom no que se refere à aprovação de OGM, sendo o organismo europeu, não raras vezes, acusado de viver num permanente conflito de interesses gerado pelos cargos que os seus elementos ocupam em sectores alimentares.
Desde o mercado dos pesticidas até aos produtos geneticamente modificados, vários são os membros directivos da EFSA que possuem ligações pouco éticas com interesses corporativos directamente interessados na aprovação e banalização dos OGM: em 2011, um relatório da Earth Open Source intitulado «Reguladores europeus para a segurança alimentar e pesticidas – Para quem trabalham eles?» expôs os laços promíscuos de uma regulação pouco credível. No documento, redigido por Claire Robinson, são reveladas ligações directas entre vários reguladores e o International Life Sciences Institute (ILSI), organização sediada nos Estados Unidos que é declaradamente financiada por grandes corporações como a Syngenta (do ramo da agricultura e biotecnologia), a DuPont (do ramo dos químicos, fibras e produtos agrícolas), a Kraft (a maior empresa de alimentos dos EUA), a Bayer (gigante farmacêutica), a Unilever (multinacional de bens de consumo) e claro… a Monsanto. «A ILSI tem estado nos EUA na mira de grupos como o Conselho de Defesa dos Recurso Naturais […] por enfraquecer padrões de regulamentação. E está empenhada em fazer o mesmo na Europa», diz Claire Robinson, deixando um pedido frontal à entidade europeia: «Pedimos à EFSA que faça uma limpeza de membros ligados à ILSI e de outras pessoas afiliadas à indústria, e os substitua por peritos que entendam o seu dever de proteger a saúde pública e o ambiente, e não interesses industriais», declarou taxativamente.
A revolta contra os interesses privados encapotados por uma política parcial e protectora da dúvida e da incerteza científica despoletaram a raiva, os protestos e o descontentamento generalizado, um pouco por todo o globo, fazendo da luta contra os OGM uma questão global. Vários têm sido os movimentos que ganharam vida, mobilizando-se para enfrentar o novo mercado transgénico. O mote foi dado pelos revoltosos norte-americanos: em Março de 2012, o povo obteve uma vitória simbólica encorajadora: um protesto de dois dias, junto aos escritórios da Monsanto na Califórnia, fechou durante um dia os gabinetes da empresa naquela região. Entre cartazes, palavras de ordem e discursos de cerrado ataque à Monsanto, estavam movimentos como o Anti-Monsanto Project ou o Global Days of Action to Shut Down Monsanto, exigindo uma moratória no cultivo de OGM e o fim das estratégias totalitárias da empresa.
Na Argentina, em Abril do mesmo ano, agricultores processaram a Monsanto e a Philip Morris sob a acusação de terem sido forçados a usar pesticidas e químicos nos seus cultivos de tabaco, tendo esses agentes causado graves sequelas na saúde dos agricultores, interferindo até com as gravidezes, levando a «defeitos de nascença devastadores», entre os quais constam: paralisia cerebral, epilepsia, síndrome de Down, cegueira e deficiências congénitas a nível cardíaco. A luta dos argentinos prolongou-se e não esmoreceu: em Janeiro de 2013 o movimento Millions Against Monsanto mobilizou protestos em Buenos Aires, exigindo a queda do monopólio agrícola por parte da empresa norte-americana: «Monsanto fora da Argentina» podia-se ler nos cartazes erguidos pelos manifestantes – «Nós temos terras férteis, minerais, lítio e minas de sal. Eles estão a pilhar a Argentina, mas, na América Latina, as pessoas estão a reagir», afirmou Jimena Romero, do movimento Millions Against Monsanto, que ligou ainda a estratégia da Monsanto à queda do presidente paraguaio Fernando Lugo, em Junho de 2012, devido a pressões externas de cariz corporativo: «Colegas provenientes do Paraguai denunciaram que o golpe contra Lugo foi orquestrado pela Monsanto». Sobre esta questão, o jornalista Idílio Méndez Grimaldi escreveu um artigo frontal e avassalador: «Quem está por detrás desta trama tão sinistra? Os impulsionadores de uma ideologia que promove o lucro máximo a qualquer preço», explicou Grimaldi, que não se coibiu de apontar o dedo à Monsanto: «Trata-se de um duro revés para a esquerda e para as organizações sociais e campesinas, acusadas pela oligarquia latifundiária de instigar os camponeses. Representa ainda um avanço do agronegócio extractivista nas mãos de multinacionais como a Monsanto, mediante a perseguição dos camponeses e a tomada de suas terras», enumera Grimaldi, referindo-se á queda do executivo às mãos da direita oligárquica com laços próximos à exploração das grandes corporações.
No Brasil a reacção popular também se tem feito notar, através do empenhamento de movimentos como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – que foca a sua luta na realização de reformas agrárias – e a organização internacional Via Campesina, composta por associações camponesas e comunidades indígenas do todo o mundo. Numa acção concertada, iniciada em Março de 2011, foi lançada a Campanha Permanente Contra os Agro-tóxicos e Pela Vida.
No Brasil, cerca de 28 % dos alimentos consumidos contêm níveis perigosos de resíduos químicos prejudiciais à saúde, estima a Agência Nacional de Vigilância Sanitária. O brutal incremento destes resíduos está óbvia e intimamente ligado à actividade da Monsanto no país e à sua expansão transgénica: só em 2010, os agricultores brasileiros foram obrigados a pagar 530 milhões de dólares à Monsanto, lucros provenientes dos direitos de autor cobrados pelo uso da tecnologia Round Up Ready.
Ainda na América Latina, mais precisamente no Peru, o Congresso aprovou, em Novembro de 2011, uma moratória de dez anos ao cultivo e importação de OGM, colocando um travão às pretensões da Monsanto no país.
Nas Malvinas, outra batalha teve desfecho feliz para os grupos populares opositores da invasão transgénica: em Fevereiro de 2013, a justiça ordenou, tendo em conta os impactos ambientais, a suspensão da construção de uma fábrica da Monsanto no país, um veredicto importante que, segundo Matias Marizza, membro da Asamblea Malvinhas Lucha por la Vida, vem mostrar a opacidade das intenções da multinacional: «Isto demonstra a ilegalidade do que se foi passando […] A resolução da justiça deixa claro que todo este procedimento foi pouco transparente».
A Índia tem sido outro dos países onde o foco da luta contra a Monsanto tem gerado polémica e revolta. Com a introdução massiva de culturas geneticamente alteradas no país – como o algodão – e a aquisição da Mahyco, a maior empresa indiana de sementes, o império da Monsanto rapidamente se consolidou no país, obrigando os agricultores a pagarem mais pelas sementes e a endividarem-se para sustentarem a sua actividade. As falências têm sido, desde então, uma praga incontornável onde o custo é, muitas vezes, a própria vida dos agricultores. No relatório «Lucha contra Monsanto: Resistencia de los movimientos de base al poder empresarial del agronegocio en la era de la “economía verde” y un clima cambiante», elaborado pelo ambientalista Joseph Zacune, entre 1995 e 2010, «mais de 250.000 agricultores suicidaram-se na Índia […] essa constitui a onda de suicídios com maior envergadura da história da Humanidade», causados principalmente pela «insuportável penúria económica que os agricultores enfrentam».
A reacção do governo indiano começou em 2010, quando, pressionado pelos protestos populares, estabeleceu uma moratória ao cultivo de beringela transgénica; em 2011, a Autoridade Nacional de Biodiversidade entrou na Justiça com um processo contra a Monsanto, por biopirataria, acusando a multinacional de transformar geneticamente culturas locais sem consultar os agricultores ou pedir qualquer autorização legal: «A Monsanto estava totalmente a par da legislação e ignorou-a deliberadamente», acusa Leo Saldanha, director da Environment Support Group, organização de defesa ambiental.
A luta concertada chegou também ao continente africano, que se juntou em 2011 ao combate da proliferação transgénica que ameaça a multiplicidade da herança natural – foi criada a Aliança para a Soberania Alimentar em África, constituída por grupos de pastores, pescadores, povos indígenas, organizações ecologistas (como a Amigos da Terra África) com o intento de mobilizar a expressividade da agricultura e das pescas, buscando soluções comunitárias que façam frente aos interesses corporativos que assolam a liberdade e integridade dos povos. Na Europa, vários têm sido os países a alinharem contra a predominância dos OGM: na Bulgária, Luxemburgo, Hungria e Grécia o cultivo e a venda de transgénicos foram totalmente banidos pela legislação nacional; na Hungria, mil hectares foram destruídos, em 2011, depois de encontrados campos de cultivo de milho geneticamente modificado.
Manifestante passa a mensagem contra a Monsanto, em Bruxelas, Bélgica (foto Kevin Van den Panhuyzen)
O monopólio contra a biodiversidade
Proporcionando tecnologia para 90 % do output geneticamente modificado em todo o planeta, a Monsanto adquiriu uma posição indestronável a nível global, alargando a sua influência a todos os continentes e monopolizando, de modo progressivo, o mercado das sementes. A sua invasão transgénica promete, segundo os cientistas, aniquilar as culturas tradicionais, fazendo prevalecer as monoculturas sobre a biodiversidade que a Natureza nos foi oferecendo, colocando em causa a soberania alimentar dos povos e a integridade do meio ambiente. O apoio governamental de que goza não foi alcançado por acaso: de 1999 a 2010, a Monsanto gastou cerca de 50 milhões de dólares em actividades lobistas junto do Congresso norte-americano e junto de agências governamentais na área do ambiente e da segurança alimentar.
Apesar de ter caído nas graças do poder político, a Monsanto alimentou, em simultâneo, um ódio global de proporções nunca antes imaginadas.
Obama, que outrora prometera rotular os OGM, assinou, em Março deste ano, um decreto que veio confirmar a sua complacência para com os interesses económicos da Monsanto: por todo o mundo, o documento, aprovado pelo Congresso, ficou fatidicamente conhecido como «Monsanto Protection Act», por demonstrar, de modo descarado, o apoio aos interesses das empresas ligadas à biotecnologia. O decreto HR 933, contendo maioritariamente resoluções económicas para o futuro do país, escondia, em pequenos parágrafos dissimulados, a infame «Secção 735», destinada a salvaguardar privilégios às empresas do arco do grande lucro – consagrando uma inaudita superioridade das empresas sobre os tribunais, essa secção vem institucionalizar que, no caso de invalidação de uma planta transgénica, o secretário da Agricultura deverá imediatamente aceitar a sua permissão temporária, invertendo assim o princípio da separação de poderes. Como se pode ler no documento, tais condições temporárias «deverão autorizar o transporte, a introdução, a continuação do cultivo, a comercialização e outras actividades específicas» – ou seja, um completo desrespeito perante a lei, perante a precaução científica, perante os consumidores tornados cobaias e perante o meio ambiente. Talvez tenha sido a gota que fez transbordar o copo, provocando uma onda mundial de protestos.
Aliado a este sentimento galopante de injustiça que se espalhou ao mundo inteiro a partir dos Estados Unidos, também a Europa entrou em sobressalto com a controversa Lei das Sementes, que veio impor o agravamento burocrático que rege a comercialização de sementes, exigindo o registo de toda e qualquer planta de cultivo que possa trocar de mãos, mesmo que tal seja feito de modo gratuito. Desta forma, a lei vem ilegalizar todas as culturas que não figurem nos Catálogos Nacionais de Variedades, contribuindo fortemente para a limitação da propagação de sementes livres, num atentado à biodiversidade agrícola e à herança biológica e cultural das sementes livres, desenquadradas de qualquer direito de propriedade intelectual.
Mais uma vez, o secretismo que conduziu todo o processo deixou incrédulos agricultores e associações ambientais: «São questões que deveriam estar em discussão pública. As pessoas não participaram neste tipo de decisões, já que são os principais interessados, e sentimos que há muita falta de informação em torno de uma matéria tão sensível», afirmou Isabel Sá, presidente da associação Aldeia. A lei, aprovada a 6 de Maio pela Comissão Europeia (proposta para aplicação em 2016), vem ao encontro, uma vez mais, do interesse das corporações, que vêem na monopolização do mercado das sementes um modo de subtrair a multiplicidade da concorrência: «No fundo o que se pretende aqui é atribuir patente de propriedade intelectual às sementes que hoje são um bem comum. O que se pretende é banir as sementes de variedades não registadas. A agricultura durante dez mil anos foi-se fazendo com uma selecção apurada de sementes, que, muitas vezes, são variedades regionais […] Se eu não provar – e o processo é altamente burocrático – que esta variedade não existia antes de a lei ser aprovada, ela fica banida. Na realidade quem pretende lucrar com tudo isto são as multinacionais ligadas ao agronegócio, atribuindo propriedade intelectual àquilo que hoje é de todos. Estamos a falar de um negócio de biliões de dólares», esclareceu Luís Alves, engenheiro agrónomo e agricultor galardoado; «Há um problema maior. Há uma biodiversidade que neste mundo global devia aumentar e pelo contrário tem vindo a diminuir. Com este tipo de leis afunilamos a biodiversidade que demorámos milhares de anos a apurar, e acabamos por ter disponíveis no mercado algumas variedades de plantas servindo os interesses de alguém», rematou Luís Alves, em entrevista à RTP.
Como reacção a esta lei, muitos agricultores têm unido esforços no sentido de angariar bancos de sementes, com vista à protecção das variedades: «O banco de sementes conta já neste momento com mais de 2000 variedades, oriundas de diversas regiões do país», revelou José Miguel Fonseca, representante da associação Colher para Semear. Por toda a Europa tem sido transversal a acção de sensibilização que move a comunidade agrícola contra a monopolização do uso das sementes, existindo, um por pouco por todo o continente, núcleos referentes à campanha Sementes Livres, impulsionada pela organização Save our Seeds. Em Portugal tal campanha é integrada e dinamizada pela Plataforma Transgénicos Fora, pelo Campo Aberto, GAIA, Quercus e pelo Movimento Pró-Informação para a Cidadania e Ambiente. A Quercus enumera as reivindicações perseguidas pela campanha – salvaguarda do direito dos agricultores à «livre reprodução, troca, guarda e venda das suas sementes; promoção da biodiversidade agrícola através da preservação das sementes de origem regional e biológica; o fim às patentes sobre a vida e ao uso de OGM na agricultura e alimentação; uma nova política agrária que, em vez de apoiar a produção industrial intensiva e as monoculturas, promova a produção ecológica e biodiversa».
Protesto contra a Monsanto no Porto (cortesia de Stop Monsanto Portugal)
Marchar contra a Monsanto
O ano de 2012 viu uma primeira vaga internacional de manifestações, originada pelo movimento Occupy Monsanto, incansável na mobilização dos consumidores para os perigos invisíveis presentes na comida: «Quer goste ou não, as hipóteses da Monsanto ter contaminado com produtos químicos e organismos geneticamente modificados a comida que você comeu hoje são grandes», alertava o movimento no seu site.
O acto de protecção do executivo de Obama aos tubarões corporativos da biotecnologia e a lei europeia de destruição da biodiversidade deram propulsão e união à grande avalanche de protestos que estava guardada para o dia 25 de Maio de 2013 – por todo o mundo a mensagem foi a mesma: marchar contra a Monsanto, o bastião representativo de todo o processo de colonização da Natureza.
Desde experimentalismos descarados, a ataques à saúde pública, passando por estudos científicos manipulados até à anexação progressiva de empresas de sementes e organizações de estudos ambientais (como o caso da Beelogics, empresa dedicada ao estudos do desaparecimento de abelhas, que foi comprada pela Monsanto, precisamente uma das corporações que mais tem contribuído para o decréscimo perigoso da espécie), a Monsanto personifica o lado mais negro do capitalismo sem escrúpulos.
Depois da falência, no estado da Califórnia, da «Prop 37», proposta que exigia a rotulagem obrigatória de OGM, Tami Canal, ambientalista e activista, resolveu criar, em Fevereiro de 2013, a página de Facebook intitulada «March Against Monsanto» de modo a declarar guerra à empresa e à proliferação de OGM – a adesão dos internautas foi maciça. «Sinto que a Monsanto e os seus produtos ameaçam a geração que estou a tentar criar, ameaça a sua longevidade, ameaça a sua fertilidade, ameaça a sua hipótese de ter uma vida saudável. Não posso ficar quieta e deixar que uma empresa monopolize a nossa alimentação», explicou Tami Canal, que viu na permissividade da classe política uma razão para enfrentar o poder corporativo: «Fomos basicamente desrespeitados pelos nossos representantes políticos elegidos para nos proteger.»
O objectivo da marcha pacífica foi o de «consciencializar o público, pois essa é a chave para parar a Monsanto; uma vez informadas, as pessoas perceberão como estão a gastar o dinheiro para alimentarem os seus filhos, e isso será um “abrir de olhos”», explicou a fundadora e co-coordenadora internacional do movimento Tami Canal, que advoga a rotulagem de OGM, a anulação do Monsanto Protection Act – que atribuí imunidade às corporações biotecnológicas – e defende uma pesquisa científica credível e isenta sobre as consequências dos transgénicos e um boicote aos produtos da Monsanto, reforçando a alternativa orgânica de uma alimentação mais saudável que apoie simultaneamente os pequenos agricultores.
A marcha estendeu-se a 52 países em cerca de 436 cidades espalhadas pelo mundo fora, reunindo no dia 25 de Maio um total de dois milhões de manifestantes que saíram às ruas para vincar a sua censura à Monsanto: «A Marcha contra a Monsanto foi um tiro de alerta sobre a biotecnologia. A próxima vez que nós – o público preocupado, os activistas informados, os cientistas que sabem e que estão dispostos a falarem – dispararmos, não falharemos», avisou Pat Thomas, antiga editora da publicação The Ecologist, jornalista e escritora natural da Califórnia.
No decorrer do protesto, o analista geopolítico F. William Engdahl foi conciso no ataque à Monsanto, afirmando que esta é «a metáfora da manipulação genética da cadeia alimentar», e explicando a razão pela qual o protesto se tornou viral em todo o mundo: «É a ideia do monopólio das sementes de todo o mundo que faz do tema Monsanto e dos OGM questões tão importantes em vários países». Em Portugal, a marcha teve lugar em Lisboa, Porto, Ponta Delgada e Horta – na capital centenas de activistas concentraram-se em frente à Assembleia da República, no Porto a marcha desembocou na Avenida dos Aliados, enquanto o Mercado da Graça foi o palco para a manifestação de indignação em Ponta Delgada. O Mercado da Horta, na ilha do Faial, também acolheu a marcha dos portugueses indignados com as corporações de sementes.
A mobilização mundial do povo enquanto consumidor e cidadão consciente dos perigos silenciosos que as grandes multinacionais vão engendrando foi um marco que intentou traduzir a força da união: a luta é viável e o gigante pode tremer. Está ao alcance de cada consumidor – unindo-se e reagindo de modo colectivo, boicotando, criticando, apresentando-se contra, censurando e desobedecendo em conformidade e respeito para com a saúde pública, o princípio básico da precaução, o direito à informação e à escolha livre.
Para além desse combate cívico que opõe cidadãos a corporações corrompidas pela ganância do lucro, outro combate tem de ser entoado: o da vida, da fauna e da flora, da biodiversidade biológica e cultural, o da luta pela salvaguarda da integridade da Natureza, da sua multiplicidade e partilha livre – há que impedir a instalação da ditadura do dinheiro fácil sobre a Natureza. Há que ponderar o imponderado avanço tecnológico e colocar limites à quebra da barreira das espécies: a ciência tem de se coadunar com a reverência à saúde do planeta. Ao tiranizar-se o processo alimentar, rouba-se uma das mais elementares liberdades de cada ser humano. Não podemos ficar reféns de corporações que mentem explicitamente para salvar o lucro alucinado que tanto perseguem, indiferentes a tudo e todos, alterando a Natureza para que esta caiba na sua tecnologia, e não o contrário. Existem sinais de esperança: na Europa, a introdução de OGM, por muito que a Comissão Europeia se deixe seduzir pelos dólares vindos do Missouri (e de outros lados), tem sido lenta e sinuosa, e grande parte dos esforços para implementar tais directrizes têm sido reduzidos.
A Monsanto, tal como a BASF, a Bayer ou a Syngenta, têm progressivamente abandonado a aposta no cultivo de transgénicos, tanto pelos entraves jurídicos como pelos baixos índices de procura, quer por parte dos agricultores quer por parte dos consumidores – na Europa, apenas Portugal, Espanha e República Checa se deparam com um aumento na comercialização de OGM, realidade bem diferente nos restantes países: «Na Europa, a Monsanto apenas vende milho geneticamente modificado em três países. O milho modificado representa menos de 1 % do cultivo de milho da União Europeia […] Não gastaremos mais dinheiro para convencer as pessoas a plantarem-no», afirmou Brandon Mitchener, representante da Monsanto na Europa e no Médio Oriente.
Apesar de não ser um sucesso rotundo em Portugal, a verdade é que a política de introdução de transgénicos prossegue, com a brava excepção dos Açores, que aprovou, em assembleia legislativa regional (em 2010), a ilegalização do cultivo de transgénicos no seu território.
A zona do Alentejo tornou-se um laboratório de experiências onde a Monsanto faz produzir o seu milho modificado, que atingiu em 2012 os 9.278,1 hectares, subindo cerca de 20 % em relação a 2011. Esta tendência, contrária à verificada no resto do continente, é o mote urgente para redefinir a posição do governo português em relação aos OGM, tendo em conta as preocupações ambientais, a contaminação irreversível dos ecossistemas, a destruição de biodiversidade agrícola, a restrição do rico património de sementes de propagação livre, bem como do debate de saúde pública que não deve ser adiado. Sob pena de hipotecarmos não só o bem comum que é a Natureza, como a nossa sanidade e a dos que nos seguirão no futuro.
Direcção-Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural - Evolução das áreas de milho geneticamente modificado, entre 2005 a 2011